Uma nova época histórica

O último congresso mundial da Quarta Internacional foi realizado em janeiro de 1991, um ano depois da queda do Muro de Berlim, nas vésperas da guerra do Golfo e do deslocamento da URSS. Ele começou a registrar as linhas de força da grande transformação mundial. Trata-se agora de atualizar esta mudança em perspectiva.

De avaliar as mudanças ocorridas desde uma década ao invés de acomodarmos-nos numa idéia rotineira de alternância dos ciclos econômicos e dos ciclos de lutas. Estamos envolvidos em uma transição global (econômica, social, institucional, cultural). A reorganização das forças sociais fundamentais e de sua representação política passa por um longo processo no curso do qual novas formas de lutas e de organizações se desenvolverão em função de comoções estruturais (de uma amplitude comparável, se se quer, às que sacudiram o movimento operário no início do século frente ao imperialismo e a guerra) e da evolução das formações sociais. Isto implica numa renovação de experiências e de gerações.

De verificar, a luz dos grandes problemas que se colocaram nestes últimos anos, a existência de um acordo fundamental sobre os acontecimentos e as tarefas sem os quais uma corrente internacional militante organizada perderia rapidamente sua função de intervenção para se reduzir a uma rede de reflexão fundada sobre afinidades residuais.

De empreender um trabalho necessário de redefinição programática. Graças a nossas tradições e nossa herança, o mundo como está continua sendo compreensível em suas grandes linhas, e nada seria mais estéril do que fazer tabula rasa do passado para extasiar-se com novidades sem conteúdo. Mas um movimento internacional que não ajudasse a pensar esta grande transformação e a responder aos problemas efetivamente novos seria rapidamente considerado inútil. Estes problemas são reais e de monta: consequências da mundialização, reorganização da divisão internacional do trabalho, modificação das relações de dominação imperialistas, crises dos Estados nacionais, formação de conjuntos econômicos e políticos regionais, desenvolvimento de instituições internacionais e definição de novas relações jurídicas. Guardando toda proporção no nível das comparações, o laboratório que se abre é de uma amplitude comparável ao do início do século, onde se forjou a cultura teórica e política do movimento operário: análise do imperialismo, debate sobre a questão nacional, debate estratégico sobre reforma e revolução, batalhas sobre as formas de organização política, social, parlamentar.

Uma mudança de época

1. O esgotamento da expansão do pós-guerra

Por trás dos acontecimentos políticos maiores destes últimos anos (queda do Muro e unificação alemã, explosão da União Soviética, guerra do Golfo e intervenções militares na África, guerra dos Balcãs) há um esgotamento da fase do crescimento e do desenvolvimento posterior à Segunda Guerra Mundial. De 1945 a 1970, a taxa de crescimento dos países industrializados foi excepcionalmente elevada (5% em média contra cerca de 2% entre 1914 e 1950, e 2,5% desde 1973), a produção mundial se multiplicou sete vezes e o comércio mundial quatro vezes.

Este crescimento impetuoso foi a base de compromissos sociais nos diferentes setores do mundo. Moldou aos atores (partidos reformistas parlamentares, movimento sindical, movimentos populistas e anti-imperialistas no Terceiro Mundo):

– desenvolvimento do Estado-Providência e do culto do progresso nos centros imperialistas, reforçando as posições reformistas, os pactos sociais e os fenômenos de burocratização do movimento operário;

– euforia burocrática na URSS e na Europa Oriental quanto à perspectiva de alcançar-superar a curto prazo o Ocidente capitalista (anos Sputinik);

– giro de Bandung (movimento dos países não-alinhados) e projetos de descolonização/desenvolvimento do Terceiro Mundo (nova ordem econômica mundial, transferências de tecnologia, projeto de substituição de importações).

Esse contexto favoreceu a expressão de um questionamento do sistema de dominação: lutas de libertação nacional (Argélia, Cuba, Indochina) contra as formas tradicionais de colonização e dependência; lutas anti-burocráticas de massas na Checoslováquia e Polónia; movimentos de juventude e ciclo de greves de massa na maior parte dos países desenvolvidos.

2. A globalização e seus limites

A aceleração da mundialização é real. O comércio internacional cresce mais rápido que os PIB’s dos países envolvidos nestas trocas; desde 1975, os investimentos diretos no estrangeiro crescem mais rápido que os investimentos domésticos; a interpenetração e fusão de capitais geram oligopólios cujas relações com os Estados de origem se afrouxam; o comércio mundial toma a dianteira face à construção dos mercados internos enquanto base da acumulação.

Podemos concluir que a economia mundial está constituída? A fórmula é muito geral para não ser ambígua. Se a aceleração mundial é incontestável, o comercio mundial representa de 20 a 30% do volume total das trocas e os investimentos diretos no estrangeiro 1% do PIB mundial em 1990. Se os mercados de capitais e mercadorias estão cada vez mais unificados, o mesmo não ocorre com o mercado de trabalho (350 milhões de trabalhadores dos países ricos tem um salário médio de U$ 18 por hora contra U$ 1 a 2 para 1,2 bilhão de trabalhadores dos países pobres). Se numerosas empresas multinacionais operam em vários continentes e produzem em várias dezenas de países, elas permanecem vinculadas à potência política, diplomática, monetária e militar dos imperialismos dominantes. Finalmente, a mundialização dos capitais se realiza, no último período, mais com base no dinamismo do setor financeiro do que num desenvolvimento das forças produtivas.

Trata-se, então, de uma situação intermediária, de transição, de crise dos antigos modos de regulação, cujos efeitos são já perceptíveis: a) mutação das formações sociais; b) deslocamento das esferas políticas e econômicas (daí as crises dos Estados nacionais e das classes dominantes), c) tentativas de reorganização regional dos mercados e das instituições.

3. O enfraquecimento social dos trabalhadores

As forças sociais e políticas moldadas pelo período de crescimento precendente estão parcial e desigualmente desestruturadas pelos efeitos da crise, das ofensivas liberais, da reorganização dos aparelhos produtivos.

Os países industrializados registram uma baixa significativa do trabalho industrial (mudança da organização do trabalho e das qualificações, individualização e flexibilização) e um ascenso dos serviços, com o crescimento espetacular do desemprego permanente e das exclusões duráveis, reorganização do espaço urbano e desmantelamento parcial das concentrações operárias (relação fábrica/casa que estruturava as solidariedades sociais), marginalidade e bolsões de pobreza, situação das mulheres e dos jovens. Ninguém pode prever o efeito cumulativo por décadas desses fenômenos dentro de sociedades onde os assalariados representam mais de 80% da população ativa.

Na ex-URSS e na Europa do Leste, o aparecimento de um capitalismo dependente terá efeitos devastadores sobre as sociedades urbanizadas e industrializadas, assumindo formas inéditas de “terceiro ou quarto-mundialização”. Esse processo está, no momento, estacionado devido ao caráter parcial das privatizações (débil desemprego oficial) ligado ao caráter híbrido das formas de propriedade mas a crise urbana já é aguda e corre o risco de provocar fenômenos de êxodo rural oposto (“êxodo urbano”) ou de movimentos migratórios para o Ocidente.

Uma série de países dependentes esgotaram o modelo de industrialização por substituição de importações, surgindo neles traços de dualização acentuada ( zonas francas, economia informal, problema agrário) assim como a degradação de suas exportações primárias devido às mudanças tecnológicas nos países desenvolvidos, à troca desigual e à forte expansão do setor financeiro nas economias. A crise urbana é de tal magnitude que não parece controlável sem profundas reformas agrárias, chocando-se diretamente com as classes dominantes ligadas à oligarquia latifundiária. Os deslocamentos massivos de população e de refugiados alcançam proporções sem precendentes, tendo como contrapartida intervenções procurando controlar esses fluxos (Haiti) ou de medidas regulamentares de inspiração xenofóbica (como os acordos de Schengen, na Europa, e o código 187, na Califórnia).

As forças organizadas (movimentos sociais, partidos, sindicatos) saídas do ciclo de lutas precedente estão enfraquecidas socialmente. Sofreram derrotas significativas nos países ricos (mineiros britânicos, escala móvel de salários na Itália, siderurgia na França) e nos países pobres (mineiros bolivianos, contra-reforma agrária no México), sem que tenham aparecido ainda os pólos organizadores do próximo ciclo de lutas.

A ruptura dos “compromissos nacionais” forjados no período de crescimento e o debilitamento dos movimentos de classe propiciam a expressão de pânicos de identidade e a busca de outras relações comunitárias (nacionais, étnicas, religiosas).

4. O questionamento dos Estados nacionais

Uma das maiores consequências da mundialização reside na desarticulação tendencial das esferas económicas e políticas. Nos anos cinqüenta, as economias nacionais dominantes formavam conjuntos relativamente coerentes, articulando um mercado, um território e um Estado. A concorrência internacional e desregulamentação internacional introduzem fraturas entre a lógica econômica e a soberania política. É difícil atribuir uma nacionalidade a um produto ou firma. As desigualdades sociais se aprofundam entre ganhadores e perdedores na corrida pela mundialização não apenas em escala internacional mas também ao interior dos próprios países desenvolvidos, pondo a prova os compromissos sociais do Estado do bem-estar.

A crise atinge aquilo que favorecia uma certa coesão social: a função redistributiva dos Estados. Daí a perda de legitimidade das instituições estatais derrotadas pelos efeitos conjugados das privatizações (reforço dos poderes econômicos privados), da globalização (perda de controle das relações econômicas e monetárias) e da desregulamentação. Esse fenômeno não afeta apenas os Estados dependentes e as classes dominantes frágeis. Ele começa também a atingir algumas burguesias européias.

A reestruturação liberal, o endividamento dos Estados (Estados Unidos, Italia, Bélgica) e das coletividades locais, o deslocamento regressivo da carga tributária em prejuízo dos pobres, a crise aguda das finanças públicas desembocam no questionamento dos mecanismos do Estado-Providência (indexação salarial, serviços públicos, proteção social, retrocesso nos contratos coletivos, privatização da seguridade social) e sobre um crescimento das desigualdades regionais. Paralelamente, a privatização dos poderes econômicos e financeiros em prejuízo do serviço público e das formas públicas de produção e gestão favorecem uma corrupção galopante e a proliferação de fenômenos mafiosos.

Nos países dependentes, esta tendência geral se traduz numa crise generalizada dos sistemas populistas (México, países árabes, África negra), num processo de privatização/dolarização e uma perda de soberania sob a pressão da dívida e a corrosão dos recursos dependentes da exportação (matérias primas), numa “desconexão forçada” para alguns países (de 1966 a 1987, o total das exportações dos países do Sul nas exportações mundiais caiu de 23% para 15%, enquanto que a parte dos Novos Países Industrializados passava de 1,1% a 5,5% e a América Latina se reduziu a 3%). O desmoronamento das elites locais, incapazes de se homogeneizarem e de se estabilizarem em torno de um projeto nacional viável, acentua a corrupção, a redistribuição clientelista de benefícios e as tendências ao deslocamento clânico/étnico de alguns Estados (Somália, Etiópia, Ruanda). As crises que México ou Argélia experimentaram demonstram em que medida países que haviam conhecido uma revolução e uma guerra de libertação radicais e que pareciam melhor colocados para enfrentar a situação de dependência tampouco conseguiram manter tais posições. O primeiro busca hoje sua saúde dentro de uma associação socialmente custosa com seu grande vizinho do Norte: EUA; enquanto o segundo se afunda no caos de uma guerra civil sob a arbitragem da antiga metrópole colonial: França.

Violência social e violência política, ascenso de “identidades obscuras”, inversamente proporcional ao desaparecimento dos vínculos e solidariedades de classe se inscrevem neste contexto.

5. A crise das classes dominantes

Divididas pela concorrência, as classes dominantes existem enquanto tais através do Estado que as unifica. Mas o projeto estruturante dos Estados nacionais (que se impôs no decorrer do século passado nos países dominantes e no curso deste século no Terceiro-Mundo) esgotou seus efeitos integradores e unificadores sem que tenha surgido um projeto alternativo. Os Estados existentes são ainda a forma necessária da dominação de classe mas não mais sua forma apropriada face às pesadas tendências da mundialização. Daí a desestabilização, perceptível por toda parte, das classes dominantes e seus representantes políticos: corrupção galopante, negócios escusos, narcotráfico, reino dos aventureiros (Fujimori, Collor, Berlusconi); questionamentos de setores burgueses e pequeno-burgueses menos dispostos à aceitar a perda de soberania do Estado e menos aptos a se adaptarem aos efeitos da concorrência liberal; sinais de divisão do grande capital sobre as perspectivas e as soluções imediatas (Europa, Nafta, OMC). Para além de suas especificidades, o caso italiano é, neste sentido, um sintoma da situação geral.

Na América Latina e nos países árabes, o ciclo populista burocrático está no limite de suas forças. Na África, numerosos Estados originados no processo de descolonização não chegaram a consolidar uma realidade nacional e uma classe burguesa dominante. Os efeitos redistributivos que puderam ter a corrupção e o clientelismo estão esgotados. Daí a explosão das elites compradoras. Encurralados entre as exigências do ajuste estrutural e a decomposição social, numerosos países dependentes se encontram debilitados (Etiópia, Sudão, Afeganistão, repúblicas da antiga URSS). Até nos países onde a luta de independência foi mais radical em suas formas e em suas conseqüências duráveis (Argélia, México, Angola e Moçambique) os regimes populistas esgotaram seu dinamismo histórico e suas elites burguesas e burocráticas se acomodam a uma perda de soberania parcial, de fato ou de direito, que acaba reforçando a agressividade (impensável há vinte anos) do discurso neocolonial sobre a imaturidade dos povos infantis e a necessidade do punho tutelar.

E nos regimes burocráticos a emergência duma burguesia dinâmica e empreendedora conhece enormes dificuldades. A decomposição dos diferentes segmentos da burocracia deu origem a uma mistura de capitalismo especulativo e de clientelismo burocrático, uma espécie de proto-burguesia mafiosa e compradora.

6. Um mundo injusto, violento e instável

O projeto socialista não é o único em crise. Também estão em crise as diferentes visões de mundo que coexistiam, se confrontavam e se complementavam durante o período precedente: os partidários do “terceiro-mundismo” de Bandung, do universalismo democrático burguês e das ilusões de progresso, do comunismo produtivista vitorioso no ano 2000. O triunfo anunciado do casamento entre o mercado livre e a democracia parlamentar fracassou. Mesmo que a analogia histórica seja um recurso inevitável do pensamento político e militar, frente a amplitude da mudança histórica em curso e as incertezas da saída apontada, de nada nos serve raciocinar por analogia (por exemplo, em relação ao início do século ou aos anos 30). É importante estar atento ao inédito, às formas especificamente contemporâneas de velhas contradições. Não estamos mais no período político de 1968, não saímos ainda da onda longa depressiva e estamos ao final de uma época, aberta pela Primeira Guerra Mundial e pela Revolução Russa.

A ruptura dos equilíbrios instáveis resultantes da última guerra mundial não desemboca em uma nova ordem, como apregoava ontem Bush, mas em novos conflitos inevitáveis em um mundo injusto (desigualdades, dependência, apartheid), violento (Golfo, Iugoslávia, Ruanda) e instável. Estamos frente a uma espécie de Contra-Reforma regressiva (econômica, política e cultural) contra as conquistas democráticas e sociais: desemprego de grande duração, precariedade, pobrezas antigas e novas, exclusões, epidemias, pauperização absoluta de algumas populações, catástrofes ecológicas, novas tecnologias e crise moral.

Sempre há uma saída para a crise econômica, o problema é saber a que preço e quem paga a conta. A crise atual não desemboca forçosamente numa catástrofe generalizada, mas o estrangulamento lento e o agravamento mundial das desigualdades podem assumir dimensões não menos violentas e não menos bárbaras. Por trás do movimento cíclico, as contradições cada vez mais potentes remetem às caraterísticas essenciais do sistema: a miséria da mercadoria como medida para regular a troca de trabalhos complexos e para organizar, a longo prazo, a relação entre a sociedade e seu meio ambiente natural.

Nas crises aparecem os novos elementos de regulação possíveis (novas tecnologias, novos produtos, divisão e organização do trabalho). No entanto, esses elementos continuam sendo parciais e não sistematizados. Restabelecer as condições de uma nova fase de acumulação e de crescimento durável não depende apenas de uma mudança nas relações de forças sociais nos países chave, mas também de uma reorganização de mercados, de territórios, de instituições, do direito.

O problema crucial é, então, de mudança de escala na ordem do dia, da redistribuição das relações de dependência e de dominação, do surgimento de conjuntos e blocos regionais, da consolidação de acordos e de órgãos internacionais capazes de disciplinar a nova ordem liberal. E é aí que os problemas se impõem:

a) dos instrumentos políticos e institucionais da internacionalização (o papel do FMI, do BM, da OMC), das alianças e das novas formas de intervenção militar imperialistas;

b) do surgimento de conjuntos regionais cujas caraterísticas permanecem fortemente diferenciadas – de uma tentativa de unificação monetária e política (União Européia) a um mercado comum entre países ricos e dependentes sobre a hegemonia imperial (Nafta), de um mercado comum dependente (Mercosul) a uma zona livre de livre-comércio mas ou menos organizada (Apec);

c) crise e deslocamento de alguns Estados, ascenso dos nacionalismos, relações entre nações-etnias-Estado, multiplicação de conflitos regionais.

Voltaremos resumidamente a estes três grandes temas. Uma das funções de uma organização internacional, mesmo modesta, é efetivamente contribuir para implementar uma atualização programática comparável, resguardando as devidas proporções, às grandes controvérsias do início do século que determinaram praticamente por um século a cultura política do movimento operário em seus diversos componentes.

Novos problemas

7. As novas instituições econômicas

Seja no campo do comércio mundial (GATT, OMC), da concertação política (reorganização previsível da ONU), da gestão da dívida (Banco Mundial/FMI), e mesmo da ecologia (Cúpula do Rio-Eco 92), as instituições ligadas à globalização parecem cada vez mais presentes e ativas. Para alguns, é o bastante para concluirem pelo surgimento de uma forma de super-imperialismo organizado com um papel crescente de oligopólios apátridas e de instituições planetárias proto-estatais.

Não nos incluímos entre estes. Longe disso. Mas os instrumentos da globalização nos colocam desde já problemas de análise e intervenção que devemos enfrentar.

a) Do GATT a OMC. Parte do sistema erguido no dia seguinte à guerra (sistema de Bretton-Woods, FMI, Banco Mundial), o GATT é um mecanismo de liberalização das trocas controlado pelas potências dominantes que perpetua o intercâmbio desigual e a dependência. Por trás da crença liberal hipócrita, a realidade: regras de ajuste estrutural, protecionismo mascarado dos ricos, hegemonia cultural e financeira reforçadas pela desregulamentação dos serviços, “patenteamento” do patrimônio genético, etc. A passagem discreta do GATT em relação à Organização Mundial do Comércio no quadro de ratificações dos acordos de Marrakesh, representa novas formas de subordinação dos Estados, dos poderes eleitos (inclusive mal eleitos) e das legislações aos regentes do mercado mundial.

b) Sob o impulso do FMI e do Banco Mundial, a dívida externa continua desempenhando uma função disciplinadora em relação aos países dependentes. Se a OMC mantém uma dimensão de representação nacional, este não é o caso do FMI e do Banco Mundial. Eles encarnam a lei do capital: um dólar, uma voz! Estas instituições têm certamente um poder de decisão limitado, comparativamente ao peso das principais multinacionais (enquanto o FMI controla haveres que representam menos de 2% das importações mundiais, apenas dez empresas transnacionais contabilizam quase o equivalente aos lucros anuais das 190 seguintes, e as 500 maiores empresas mundiais demitiram uma média de 400 mil trabalhadores por ano para garantir o aumento de sua rentabilidade), mas suficiente para cumprir o papel de gendarmes do Terceiro Mundo ou dos países do Leste.

Pode-se conceber outro modo de cooperação e de crescimento do planeta: organismos internacionais de regulamentação substituindo o BM/FMI/OMC/G-7; organismos de promoção do comércio internacional entre países de produtividade similar; transferência planejada de riquezas dos países que as acumularam durante séculos em detrimento dos países pobres; novos dispositivos de regulação dos intercâmbios que permitam projetos de desenvolvimento diferenciados, desconexão parcial e controlada do mercado mundial e uma política de preços correta; uma política migratória negociada neste contexto.

c) O debate sobre uma eventual “cláusula social” contra as importações provenientes dos países dominados, e as novas formas de protecionismo mais ou menos declaradas ilustram bem a perversidade do sistema. Nos países ricos, eventuais medidas de proteção tarifária não seriam admitidas senão como formas de sancionar indústrias que atuam no exterior com exploração de mão-de-obra barata e sem direitos trabalhistas (como o código de conduta europeu ou o código Sullivan para as empresas que operavam na África do Sul na época das sanções). A concorrência do Terceiro Mundo invocada para justificar o desemprego nos países industrializados é ilusionismo puro.

– O intercâmbio comercial entre países ricos e países dependentes, incluídos os novos países industrializados (NPI), pode até se traduzir em perda de empregos, mas em geral o fluxo de capitais representa benefícios. O desemprego não é, portanto, resultante principalmente da concorrência apresentada como desleal, mas um problema da própria lógica econômica e do aumento da produtividade em empregos que atendam às necessidades sociais.

– Sob os efeitos da desregulamentação, as vantagens comparativas de deslocamentos para os países do Terceiro Mundo tendem a se reduzir frente aos deslocamentos internos nos próprios países ricos, e tiram vantagem do desenvolvimento desigual das garantias e das normas sociais (os desníveis salariais têm se revelado consideráveis no próprio seio da comunidade européia).

– Além disso, o essencial dos bens importados nos setores de grande densidade de mão de obra (tais como têxteis ou de componentes eletrônicos) são provenientes de fábricas atuando no exterior pertencentes aos grupos industriais de países imperialistas e, à exceção da Coréia do Sul, majoritariamente não são de empresas nacionais dos países exportadores. A questão chave não é então impingir dentro dos países ricos, um imposto social à importação (cujo controle e destino seriam demasiado incertos) e sim da estratégia a adotar com relação às empresas multinacionais que produzem no estrangeiro e do controle a que elas estariam sujeitas (vigilância, expropriação total ou parcial, reforma fiscal), ou inclusive de desenvolvimento de projetos alternativos aos grandes projetos capitalistas (G7 sobre as telecomunicações).

8. Hierarquia de poder e intervenção militar

Uma das condições políticas para saída da crise está na reorganização da liderança mundial. Onde está o declínio norte-americano? Desde a guerra do Golfo, os Estados Unidos têm usado a superioridade militar e a potência de seu Estado para reafirmar sua hegemonia militar e diplomática; começaram a restabelecer sua competitividade produtiva em alguns setores. Mas a permanência de enormes déficits comerciais e orçamentários enfatiza a fragilidade de tais evoluções. Os impasses da Europa e as limitações do Japão, por outro lado, impedem o surgimento, a curto prazo, de uma real alternativa à liderança mundial americana. A contradição entre o poder político e o debilitamento econômico dos EUA reflete-se, inclusive, nas contradições das instituições internacionais: reorganização do Conselho da ONU, inexistência de uma nova ordem monetária, redefinição dos pactos militares, precariedade da OMC ante os protecionismos maquiados das potências.

Mesmo antes da intervenção iraquiana no Kuait, os Estados Unidos (e as principais potências européias) reorientaram sua política militar em função de novas bases estratégicas (doutrina de Aspen) dando prioridade à luta contra a instabilidade do Terceiro Mundo. A nova doutrina havia sido preparada e testada pela montagem e operação das forças de intervenção rápida, pelas guerras chamadas de baixa intensidade (América Central), pelas intervenções pontuais diretas (Granada, Panamá). A guerra do Golfo foi a primeira demonstração, em uma outra escala, desta estratégia de golpes pontuais massivos, no contexto de novas relações de forças mundiais. Imposta pelos transtornos político-estratégicos europeus, a redefinição do papel da OTAN, está desde o seu início, subordinada a esta política em seu conjunto.

A legitimação humanitária das intervenções militares figura como o quarto componente estratégico nos documentos do Conselho Segurança Nacional dos Estados Unidos. As noções de direitos e deveres de ingerência (e reciprocidade) oscilam entre o dever moral e o direito político. O dever postula uma impossível inocência dos interventores, como se o passado, os interesses, a hierarquia concentrada no conselho de segurança da ONU e seus membros permanentes não existissem mais.

Na realidade, trata-se de um arremedo de um novo direito internacional, traduzindo as novas relações de forças e conferindo à preservação da ordem planetária uma legitimidade antes comprometida pelas guerras coloniais e sobretudo pela longa intervenção no Vietnã. As intervenções no Golfo, na Somália, na ex-Iugoslávia, em Ruanda tem exibido as contradições práticas desta montagem jurídico-ideológica: quem decide e quem aplica? (Decisões da ONU e comando militar de operações? O que será da sempre proclamada soberania dos Estados? Qual seria a reciprocidade deste direito de mão única: não mais a intervenção dos ricos nos países pobres, mas o contrário?).

Tão logo apresentada como a autoridade cosmopolita da nova ordem mundial, a ONU assumiu o que fundamentalmente é: a cobertura legal de empresas e expedições imperialistas. A ONU faz os comunicados. Mas, o vazio jurídico, do ponto de vista mesmo da sua Carta de Intenções e do direito internacional, permitem uma multiplicação de intervenções de nível diferente. Nos casos mais graves, são os Estados intervindo sob o comando da OTAN (Bósnia) ou dos Estados Unidos (Golfo), que decidem intervir ignorando as posições da ONU (França em Ruanda, Estados Unidos no Haiti).

O fim da distribuição bipolar oriunda de Yalta desnuda os problemas de representatividade dos organismos internacionais e as dificuldades de redefinição de sua composição sobre a base de outros critérios que as relações de força superadas desde o fim da última guerra mundial (a exemplo do conselho de segurança, por zonas geográficas, potência militar, peso demográfico). As hierarquias herdadas de Yalta caducaram, mas não está à vista ainda a soberania democrática internacional que supere a mediação dos Estados ou das alianças de Estados. A contradição permanece, então, explosiva entre as necessidades de regulação proto-estatal mundial, ligada à internacionalização do mercado de bens e de capitais (transferências formais ou informais de soberania) por um lado, e por outro, a regulação social, ainda nacional no seu essencial, ligada à transformação do mercado de trabalho.

9. Por uma Europa social e solidária

O Tratado de Maastricht representa uma opção estratégica: traduz o projeto da organização política da Europa sob a pressão de uma camisa de força monetária e dos critérios de convergência. A partir dos procedimentos de ratificação de Maastricht combatemos o tratado, não para clamar pela soberania nacional ameaçada como o fazem as direitas chauvinistas, mas de um ponto de vista de classe: em nome da solidariedade social atacada pelo euroliberalismo e em nome de uma Europa social e solidária, comprometida pelos efeitos desiguais e seletivos desta Europa financeira e não democrática.

A engrenagem foi colocada em movimento. O projeto inicial de Maastricht já está caduco tanto por razões econômicas (não prevista pelos tecnocratas, a brutalidade da crise explodiu com o Sistema Monetário Europeu e os critérios de convergência desde 1992), quanto políticas (a queda do bloco do Leste e os imperativos políticos da ampliação). A idéia, reivindicada pela democracia cristã alemã, de uma Europa a diferentes velocidades (uma zona de livre comércio e uma rede de associação política até a Rússia, organizadas em torno de um núcleo duro proto-estatal franco-alemão), responde a esta nova situação dentro da continuidade de Ata Única e do espírito de Maastricht (não ao pé da letra, pois isso tem se demonstrado impraticável).

Ainda que não partam do zero, e embora sejamos em parte prisioneiros das orientações já tomadas (Ata Única, Maastricht, ampliação), trata-se de colocar novamente de pé o projeto europeu: a Europa não será a mesma dependendo das forças sociais que tomem a iniciativa e determinem seu conteúdo:

– Ampliação e aprofundamento: adesão política e convergência social contra a camisa de força monetária: redução coordenada imediata da jornada de trabalho para 35 horas máximas; sistema europeu de indexação de salários e salário mínimo europeu; harmonização da proteção social alinhada a partir das conquistas mais vantajosas; plano de grandes projetos em transportes, comunicações, energia; projetos industriais e “europeização” de multinacionais estratégicas.

– Uma Europa democrática e cidadã: cidadania e instituições européias (direito de voto aos residentes; direitos sociais e cívicos efetivamente iguais para as mulheres), assembléia européia e direito de veto dos parlamentos nacionais; supressão dos acordos de Schengen e das medidas discriminatórias como as leis Pasqua. Aplicação correta da relação de associação voluntária: definir o conteúdo democrático de subsidiariedade como nova distribuição das competências e dos atributos de soberania a nível de Estados, da União Européia e a nível internacional. Neste quadro seria possível conquistar, em definitivo, avanços rumo à supranacionalidade e ao reconhecimento de direitos nacionais coletivos (País Basco, Córsega, etc).

– Uma Europa pacífica e solidária: desarmamento nuclear; supressão da dívida, nova cooperação; medidas ecológicas.

10. Alternativas ao nacionalismo

Nas atuais condições de internacionalização da produção e do comércio, de sua crise de eficácia, de desorganização da divisão do trabalho, de novas miscigenações de populações, os Estados-nacionais não podem continuar assumindo o mesmo papel integrador do século passado (integração no mercado mundial, soberania limitada, interpenetração das populações). Daí a busca de uma legitimidade mítica (a terra e os mortos), “étnica” ou de identidade (chauvinismo e xenofobia), com sua carga de fantasmas purificadores. A Iugoslávia não é uma exceção (Israel, Alemanha). Nestas condições, o nacionalismo do oprimido pode muito rapidamente converter-se em nacionalismo opressor de suas próprias minorias. Uma alternativa de classe exige mais que nunca uma estreita relação entre projetos nacionais-democráticos e uma redefinição das trocas, alternativas à OMC e aos ajustes estruturais do FMI, assim como a defesa de reivindicações democráticas regionais ou étnicas num quadro de solidariedade mais amplo evitando os becos sem saída do nacionalismo: primazia da cidadania sobre a nacionalidade; direito à autodeterminação e livre associação (subsidiariedade); garantia de direitos às minorias (lingüísticas, escolares, culturais).

11. Construir um novo programa

As reivindicações transitórias constituem uma ponte entre as reivindicações imediatas que vão responder às necessidades urgentes e a conquista do poder. Mas estas pontes e passarelas são, no momento, muito precárias. Onde está o poder? Ainda concentrado nos aparatos do Estado, mas também delegado às instituições regionais e internacionais.

É um problema para as classes dominantes. A idéia de um espaço político, econômico, territorial homogêneo está ultrapassada, mas nada garante que tal espaço será reconstruído numa escala superior (regional). As divisões na burguesia ilustram bem as contradições entre um capital diretamente mundializado, um capital ainda protegido por suas instituições nacionais e um capital que busca uma reorganização intermediária (União Européia), com todas a implicações possíveis e imaginárias entre estes três níveis.

É um problema estratégico maior para o movimento operário, cujas políticas foram moldadas há décadas no quadro de Estado nacional, com suas versões revolucionárias (nacionalizações, monopólio de comércio exterior, dualidade de poder) ou reformistas (democratização e políticas keynesianas). Hoje, a dissociação dos poderes políticos e econômicos, a dispersão dos centros de decisão e dos atributos de soberania (a nível local, nacional, regional, mundial) fazem com que as passarelas projetadas a partir das reivindicações imediatas partam em diferentes direções. É surpreendente constatar que o programa do PT brasileiro era muito mais moderado que o programa reformista radical da Unidade Popular chilena de 1970, ou que um programa radical em alguns países europeus (redução da jornada de trabalho, direitos dos imigrantes, suspensão da dívida e desmilitarização) e freqüentemente muito mais rebaixado que os programas reformistas dos anos 70, pelo menos na sua forma escrita (nacionalização, elementos de controle e de auto-gestão). Confrontados com a impotência de um reformismo sem reformas, as forças majoritárias do movimento operário oscilam entre adaptação à lógica liberal (social-democracia modernista) e a recaída nacionalista (alguns partidos comunistas ou ex-comunistas).

A defesa dos direitos e conquistas sociais se apóia sobre as legislações e as instituições existentes, mas as medidas eficazes contra o desemprego e por uma economia a serviço das necessidades sociais assumem uma dimensão diretamente regional ou internacional (redução coordenada da jornada de trabalho, políticas comuns, projetos de investimentos ou socialização de empresas multinacionais). Trata-se então – a partir das lutas e experiências, por mais modestas e parciais que sejam – de formular e atualizar uma proposta transitória para o século vindouro. É também a forma, abordando temas centrais e acessíveis, de dar um conteúdo dinâmico e acessível à recomposição. Trata-se de reformular os primeiros contornos de uma proposta que conduza a uma contestação de conjunto da ordem estabelecida:

a) cidadania/democracia (política e social): com relação à universalidade truncada dos direitos humanos proclamados, direitos civis e igualdade de direitos (imigrantes, mulheres, jovens), direitos civis e direitos sociais (igualdade homens/mulheres); direitos sociais e serviços públicos;

b) contra a ditadura do mercado, suas conseqüências a curto prazo, sua lógica de desigualdades: direito à vida a começar pelo direito ao emprego e à garantia de renda mínima; reciclagem dos lucros da produtividade (serviços de educação, saúde, moradia) com ampliação da gratuidade e ingerência no direito da propriedade privada. Direito dos cidadãos/cidadãs à propriedade social das grandes empresas cujas opções e decisões tenham uma maior incidência sobre suas condições de vida presentes e futuras. Esse direito não implica necessariamente uma nacionalização, mas uma socialização efetiva (direito ao uso autoadministrado, descentralização, planificação).

c) solidariedade entre gerações (proteção social, ecologia);

d) solidariedade sem fronteiras: desarmamento, dívida, constituição de espaços políticos regionais, internacionalização de direitos sociais.

Um trabalho análogo deve ser feito a partir dos problemas mais candentes dos países dependentes (dívida, reforma agrária, cooperação regional) ou dos países do Leste (alternativa às privatizações, democracia, problema das nacionalidades).

Uma conclusão provisória

12. Uma mutação histórica

Seguramente, os ciclos econômicos existem. Seguramente, há os fluxos e refluxos nas lutas e temos assistido, aqui e ali, explosões, mobilizações e resistências combativas. Mas arrolar estes acontecimentos não nos deve fazer esquecer que a mudança em curso não é conjuntural e que se trata de uma mutação histórica do modo de acumulação capitalista, sobre o qual é ainda muito prematuro tirar as consequências estratégicas. Mas não é cedo demais para se conscientizar da dimensão do problema. A crise de direção revolucionária, que resultou na crise do movimento operário, assume todo o seu sentido nesta perspectiva histórica.

A situação mundial é sempre o campo de tendências contraditórias. Sem dúvida, é impossível, a partir da década passada, equilibrar os prós e contras, os pontos ruins e os bons: Nicarágua por Chiapas, Palestina pela África do Sul. Os termos não são equivalentes. Basta ouvir e ler as declarações do Exército Zapatista de Libertação Nacional: uma insurreição da desesperança contra os efeitos da modernização liberal. No fim do apartheid, como na queda das ditaduras burocráticas, muitos fatores entraram em jogo. Sem dúvida uma mobilização de massas e a expressão de aspirações democráticas, mas combinada às necessidades próprias do capital: o sistema do apartheid entrava em contradição, cada vez mais, insustentável com os ventos de liberalização e da desregulamentação. Uma vez estabelecida a dinâmica, sua direção está principalmente determinada pelas relações de força mundiais. Assim, uma tendência se impõe claramente, ilustrada não por suposições mas pelos acontecimentos principais: desmantelamento da União Soviética sem desembocar numa revolução política, dinâmica restauradora dominante no Leste, unificação imperialista na Alemanha, derrotas da revolução centro-americana, guerra do Golfo, acordos Israel-Palestina, aprofundamento do isolamento e esgotamento da revolução cubana.

A crise de direção e do projeto do movimento operário resulta então de três fatores combinados: os efeitos sociais duráveis da crise (mutação social); os efeitos cumulativos desorganizadores da política das direções reformistas e populistas face ao primeiro choque da crise; os efeitos profundos da crise do “socialismo realmente existente”.

Nos países imperialistas, os partidos estalinistas desacreditaram a revolução e os sociais-democratas a reforma. Nem uns nem outros cumprem hoje a mesma função que tinham nos períodos passados. Os primeiros não mais embasam sua identidade na referência do campo socialista e não podem se transformar em partidos reformistas nacionais a menos que, neste papel, suplantem a social-democracia. Ao mesmo tempo, os partidos social-democratas tradicionais, apanhados pelo turbilhão liberal da gestão leal e pelo impasse das receitas keynesianas nacionais, estão estreitamente associados ao capital europeu, assumindo-se como a ala mercantil da Europa de Maastricht, e encarnando cada vez mais um reformismo sem reformas. Esta crise de representatividade do movimento operário traduz-se paralelamente numa crise (desigual conforme o país) da eficácia e da representatividade do movimento sindical, pela fragmentação e atomização da consciência de classe.

Nos países da Europa do Leste e da ex-União Soviética, o fato de o discurso de classe é o do antigo poder com a perda de sentido das palavras, que não tenha se dado uma fusão entre as aspirações democráticas da sociedade e do movimento de classe, que a debilidade das lutas anticapitalistas de massas nos países avançados não mais ofereça uma referência positiva como em 1968, constituem obstáculos ao renascimento de um movimento social independente do capital tanto quanto as antigas frações da burocracia.

Nos países dependentes, onde as correntes anti-imperialistas progressistas podiam realizar alianças conflitantes com os setores de uma (pequena) burguesia em formação, as mudanças nas relações de forças internacionais conduzem a um realinhamento realista em cascata (acomodamentos e compromissos com o Banco Mundial e o FMI). Na época onde a OPEP parecia poder fazer escola e onde a divisão internacional do trabalho herdada do colonialismo permitia uma margem de manobra e acordos, parece superada. Um tempo encoberto pela elevação do preço do petróleo, a desarticulação deste dispositivo começou no final dos anos 70, com a queda de preços das matérias primas, solapando a base social e a auto-confiança deste movimento anti-imperialista. As mudanças das relações políticas mundiais posteriores à queda do muro de Berlim, ao desmantelamento da União Soviética e à guerra do Golfo desferiram o último golpe, provocando uma crise aberta, não conjuntural, das formas de anti-imperialismo radical da fase precedente (confusão no Panamá, no Haiti) e a forte tentação de adaptação destrutiva a uma linha de retrocesso em nome de um realismo ilusório (Salvador, Nicarágua, África do Sul).

Neste momento, a tendência dominante em escala internacional é de debilitamento do movimento social (a começar pelo sindical). Se processos eleitorais produzem mudanças de vulto (Itália), raramente os favorecidos são os partidos do movimento operário e menos ainda as alternativas radicais aos partidos no poder: caudilhos e formações populistas, inclusive os partidos de extrema-direita são, pelo contrário, os primeiros beneficiários da derrota de partidos tradicionais. A esquerda revolucionária está hoje mais pulverizada e debilitada que há cinco anos atrás (crise das organizações centroamericanas, racha do PC filipino, retrocesso da esquerda sindical sul-africana). Para a reconstrução de um projeto revolucionário e de uma Internacional partimos de condições consideravelmente deterioradas.

13. Evitar mal entendidos

A discussão no CEI exige algumas precisões para tentarmos pelo menos evitar os maiores mal entendidos. Alguns camaradas tem se concentrado muito na ideia de mudança de época. Temos que permanecer lúcidos. Os historiadores têm inventado categorias extremamente refinadas e sofisticadas para expressar a periodização dos ritmos (ciclos, fases, etapas, etc). Trata-se de simplesmente reafirmar que não estamos numa alternância rotineira de ascensos e descensos, mas numa configuração que se acaba e que a mudança operada pela reorganização do capital coloca realmente novos problemas. Se existe uma utilização ideológica do tema da internacionalização (apologia do liberalismo sem fronteiras e resignação às exigências que dele decorrem), isso não a faz menos real e determinante da dinâmica das transformações sociais, das fraturas políticas, da desestabilização dos Estados.

Outros camaradas têm insistido na emergência de elementos de um novo modo de regulação imaginável. É verdade e tem lógica. Não existem na história cortes bruscos. O novo se prepara no antigo e os elementos de solução amadurecem no quadro da crise: tecnologias, organização do trabalho, novos mercados e novos produtos. Mas estes fenômenos não têm até agora nem a amplitude (generalização), nem a coerência suficientes para iniciar uma nova fase de crescimento durável. Por isto insistimos nas condições políticas e institucionais de saída da onda recessiva. Isto não quer dizer que estas condições devem tomar a forma de catástrofe única ou de uma nova guerra mundial. Evocamos no informe uma hipótese de estrangulamento lento, onde os conflitos locais de alcance internacional (tipo Bósnia) podem ser um dos aspectos.

Finalmente, questionamos se é realmente necessário passar tanto tempo numa polêmica estéril sobre a “nova ordem mundial”, como se alguns (a maioria) deixando-se levar por um pessimismo desesperado tivessem passado a acreditar na constituição de tal ordem e como se outros (fiéis a sua fé revolucionária) depositassem toda sua confiança na capacidade das massas. A resolução majoritária do último congresso mundial insistia (já no seu título) sobre as novas desordens (presentes como a guerra do Golfo e futuras). Impossível ler os jornais diários nos dias de hoje e ver um mundo ordenado! O antagonismo, o conflito, a luta são inerentes ao sistema e isto não está perto de se acabar. Mas o problema começa precisamente aí. Não se pode prever senão a luta, dizia sabiamente Gramsci, e não o seu desenvolvimento.

A revolução é necessária. Nós lutamos por torná-la possível e vitoriosa. Mas a vitória não é certa e sobretudo somos um número reduzido (como os militares sempre em atraso numa guerra por serem obrigados a raciocinar tomando por base as guerras precedentes), imaginando um projeto revolucionário a partir da experiência de revoluções passadas, enquanto o renascimento de um movimento social aportará provavelmente respostas inéditas.

14. Onde está o poder?

Alguns camaradas parecem chocados pela pergunta colocada no informe: “onde está o poder?”. Pode-se responder simplesmente que a luta de classes começa, como disseram os clássicos de Marx a Trotsky, na arena nacional e que seu horizonte estratégico continua sendo, em primeiro lugar, a conquista do poder político em escala nacional. Isso não é falso, mas já não é totalmente verdadeiro. Rechaçamos claramente a idéia de um super-imperialismo realmente existente que reduziria os Estados nacionais à condição de vestígios e converteria em falsas as lutas no seu nível; o objetivo louvável mas distante de uma mundialização das lutas (ou de uma renovação internacionalista) pode então servir de pretexto para a resignação, a passividade ou a adaptação à dinâmica liberal.

Mas ao contrário, estes Estados e o poder que eles representam perdem o controle de uma parte crescente dos processos de produção, dos fluxos monetários, dos deslocamentos de capitais. De sorte que a dimensão nacional da luta pelo poder político está cada vez mais diretamente imbricada à dimensão regional e mundial. Não podemos mais responder à pergunta chamada dos “constrangimentos externos” como fazíamos na época das primeiras polêmicas sobre o programa comum da esquerda na França dos anos 70. Uma proposta transitória deve articular diretamente as reivindicações de defesa das conquistas num quadro nacional e das proposições de transformações ao menos continentais. Na sua ausência, a iniciativa sobre esta questão é deixada para a burguesia.

Um problema análogo se coloca para os países dependentes encurralados na nova divisão internacional do trabalho e cujo espaço tático tem se reduzido consideravelmente. Já assinalamos que o programa do PT brasileiro (o programa votado, inclusive por nós, e não a campanha de Lula) era muito mais moderado que o programa da Unidade Popular chilena. E trata-se do Brasil! Que dizer dos países que não têm este nível de industrialização e de capacidade produtiva? Sobre quais condições a desconexão do mercado mundial pode se constituir ainda em um caminho para o início de um desenvolvimento? Quais são os efeitos do que alguns economistas chamam de desconexão forçada para lembrar a exclusão de países ou de regiões colocados à margem do mercado mundial?

Marxismo, Modernidade e Utopia, Editoria Xamã, 2000 (informe preparatório do XIV Congresso Mundial da Quarta Internacional, 1995)

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