Na onda de antimarxismo que acompanhou a ofensiva liberal dos anos 1980, a estatura de Marx permanecia suficientemente imponente para que pudéssemos ter certeza de um regresso à graça, de uma reabilitação editorial e académica, com a condição de ser numa versão light, sem o lastro de sua carga subversiva. Podia-se mesmo esperar alguma indulgência em relação a Trotsky, em reconhecimento dos talentos literários atestados pela sua História da Revolução Russa, e em função da fascinação estética que suscita seu destino trágico de vencido.
Mas Lenine! O seu papel é sem dúvida o mais ingrato. O do vilão da história, morto cedo demais para ter conhecido os processos e o exílio, suspeito de ter vencido, vítima de um culto de que foi ídolo, apesar de si mesmo. Quem irá ainda meter o nariz nos quarenta volumes encadernados das Edições de Moscovo, com cheiro a cola de peixe? Quem irá mergulhar nesta sucessão de artigos, de notas de jornalista, de escritos de luta e de circunstância, de polémicas cujos destinatários na maior parte caíram no esquecimento?
Quase não há grandes livros nesta compilação de brochuras, de artigos e de textos militantes. Apesar da sua extraordinária profundidade para uma obra de juventude, O desenvolvimento do capitalismo na Rússia muito cedo cansará o leitor submerso nas estatísticas áridas dos zemstvos. Com as suas obras, e a sua acuidade teórica laconicamente exercida nas margens da Lógica de Hegel, Lenine não está prestes a ter as honras da sua publicação pelas Edições La Pléiade.
Bem poucos se arriscaram seriamente por este pensamento desconcertante, numa época onde a universidade ousava, contudo, acolhê-lo: Althusser, Lefebvre, Colletti, Lukacs antes deles1… Lenine merece, contudo, uma imagem diferente da de um vulgar técnico do golpe de Estado. Bem mais que Marx, ele é um autêntico pensador da política em acção, nas contradições e nos limites de uma época.
O partido como caixa de velocidades
A noção de “leninismo” é usada a torto e a direito, sem sequer se lembrar que este termo foi originalmente codificado por Zinoviev no Quinto Congresso da Internacional Comunista para justificar o enquadramento dos jovens partidos comunistas, sob a cobertura de bolchevização. Ora, bem mais que uma forma de disciplina e de centralização, a ideia directora de Lenine visa “a confusão entre o partido e a classe”, confusão qualificada de “desorganizadora”. A distinção introduzida desta forma entre classe e partido inscreve-se nas grandes polémicas do movimento socialista da época e, mais especificamente na Rússia, volta-se contra as correntes populistas, “economicistas”, mencheviques. Sobre questões fundamentais, como as do governo provisório ou das alianças, nestes anos de formação da social-democracia russa, mencheviques e “economicistas” defendiam às vezes em comum posições na aparência mais intransigentes, mais conformes à ideia de um “socialismo puro”, que os bolcheviques. Esta ortodoxia decorria, na realidade, de uma visão de que a revolução democrática “burguesa” contra o despotismo constituía uma etapa necessária inevitável, durante a qual o movimento operário nascente deveria permanecer uma força auxiliar, sem se comprometer com qualquer poder, esperando uma modernização capitalista da sociedade.
Na vizinha Alemanha, Kautsky sustentava então a ideia paralela de uma “acumulação passiva” de forças e de não-participação governamental, até que a maioria eleitoral do proletariado, juntando-se à sua maioria social, lhe permitisse governar sozinho. Pôde-se qualificar este socialismo de marcha para o poder, confiando na lógica do progresso, de “socialismo fora do tempo”. Tratava-se mais exactamente de um socialismo abandonado ao curso do tempo, de um rebaixamento da luta propriamente política em favor de um determinismo sociológico.
Lenine opõe-se de forma bastante original para a época a esta redução do político ao social. Como se fosse um psicanalista atento aos “deslocamentos” e “condensações” em acção nas neuroses, ele compreende que as contradições económicas e sociais não se exprimem directamente, mas sob a forma específica, deformada e transformada, da política. É por isso que o partido tem por tarefa especialmente ficar à escuta, decifrar no campo político a maneira frequentemente inesperada pela qual se manifestam estas contradições (uma luta estudantil, o caso Dreyfus, a questão eleitoral, um incidente internacional). A sua irrupção intempestiva num ponto imprevisto é um sintoma. Ela condensa e revela uma crise latente global das relações sociais. É o milagre daquilo que, diferentemente dos factos diversos ordinários, constitui, propriamente falando, o acontecimento político.
É também por isso que a concepção do militante revolucionário não é para Lenine a do bom sindicalista combativo mas a do “tribuno do povo”, intervindo “em todas as camadas da população”, para apreender a forma concreta em que se entrelaçam uma multiplicidade de contradições. Esta questão está no coração do famoso debate sobre os estatutos do partido, minuciosamente comentados em Um passo à frente, dois passos para trás. A definição de membro do partido (aquele que simplesmente se reconhece no partido, o ajuda ou simpatiza com ele…, ou aquele que milita numa instância regular, quotiza, se sente responsável pelas decisões tomadas colectivamente) não é uma querela formal ou administrativa. O que está em jogo nesta pequena diferença, à primeira vista insignificante, é a delimitação do partido frente à classe. É precisamente a forma partido que permite intervir sobre o campo político, agir sobre o possível, não sofrer passivamente os fluxos e refluxos da luta de classes.
Aí reside o essencial da “revolução” segundo Lenine. Através desta distinção do partido e da classe, do político e do social, torna-se possível pensar a relação de um com o outro, “a representação do social na política”, que para Badiou é “o ponto-chave”. Pode ser que, em 1902, a tese tenha sido forçada no fogo da polémica interna. Os seus excessos são aliás corrigidos pelo próprio Lenine. A controvertida questão do “centralismo democrático”, deformada pela prática do centralismo burocrático real, estabelecido a partir de 1924, decorre em grande parte desta delimitação do partido e da classe. Implica, logicamente, a selecção dos militantes, a concentração de forças, e ao mesmo tempo uma democracia que permita a assimilação do conjunto das experiências sociais do partido. A democracia é funcional para a reflexão e a decisão, o centralismo para uma acção que visa mover as linhas, deslocar as correlações de forças. Trata-se de necessidades gerais. São irredutíveis a tal ou qual técnica de organização.
Na sua discussão com Rosa Luxemburgo a propósito de Um passo à frente, dois passos para trás, Lenine distingue explicitamente os “princípios de organização”, ligados às condições gerais de luta sob o reino do capital, do “sistema de organização”, variável segundo as condições concretas de legalidade, da repressão, do desenvolvimento. À luz da experiência de 1905, Lenine insiste, na sua colectânea Doze anos, no facto de o partido por mais delimitado que seja, viver em intercâmbio e diálogo permanentes com as experiências da classe (principalmente a inovação imprevista que foram os sovietes). O que permanece, para além destas nuances e variações, é que o partido não é uma forma de organização entre outras, sindicais ou associativas, mas a forma específica sob a qual a luta de classes se inscreve no campo político. Esta ideia da especificidade do político se reencontra aliás na noção de crise revolucionária, consequência não de um simples movimento social, mas de uma “crise nacional”, crise geral das relações recíprocas entre todas as classes da sociedade. O que Lenine escreve a este respeito no Que Fazer? é muito claro: “O conhecimento que a classe operária pode ter de si mesma está indissoluvelmente ligado a um conhecimento preciso das relações recíprocas de todas as classes da sociedade contemporânea, conhecimento não só teórico, digamos menos teórico do que baseado na experiência da vida política” (Lenine, Œuvres IX, p.119, e XV, p.298). Sublinhemos: é através da experiência da vida política que se adquire este conhecimento das relações recíprocas entre todas as classes. Trata-se de “medir a pulsação ao conjunto da vida política”. É por isso que “nossa revolução é a de todo o povo”.
O partido é o vector privilegiado desta experiência especificamente política. A sua mediação estabelece a ligação entre a estratégia e a táctica, num tempo kairótico, que não é já o tempo homogéneo e vazio do progresso e da paciência eleitoral, mas um tempo denso, nodoso, ritmado pela luta e esburacado por crises: “Não se pode representar a própria revolução como um acto único: a revolução será uma sucessão rápida de explosões mais ou menos violentas, alternando com fases de calma mais ou menos profundas. É por isso que a actividade essencial do nosso partido, o centro essencial de sua actividade, deve ser um trabalho possível e necessário tanto nos períodos mais violentos de explosão como nos de calma, isto é, um trabalho de agitação política unificada em toda a Rússia”.
O partido é, portanto, o elemento de continuidade nas flutuações da consciência colectiva. A história não é uma marcha triunfal de qualquer força tranquila rumo ao desenlace garantido da história, mas um tecido de lutas, de crises e de fracturas. O partido não se limita a esclarecer um processo orgânico e natural de emancipação social. Ele é constituinte das correlações de forças, gerador de iniciativas, organizador da política, não no futuro simples, mas no condicional. Ele é, dizendo de outra maneira, um organizador dos diversos tempos, a condição de um pensamento estratégico que ultrapassa o horizonte imediato da táctica política do dia a dia, do passo a passo, rigorosamente sem princípios. Esta abordagem, original em relação à cultura dominante na Segunda Internacional, torna concebíveis as escolhas e a atitude adoptada nas jornadas cruciais de Julho de 1917: o partido é, então, chamado a envolver-se numa acção que não deseja, para limitar seus efeitos negativos, para assimilar as suas lições, para conter o refluxo e preparar o contra-ataque.
A principal crítica dirigida, menos ao “leninismo sob Lenine”, às ideias reais de Lenine, do que à vulgata do “leninismo” estalinizado, refere-se à convicção a posteriori de que a noção de partido de vanguarda conteria em embrião, desde a origem, todos os graus da substituição do movimento social real pelo aparelho, e todos os círculos do inferno burocrático. Seria errado minimizar este aspecto da questão, que exige uma discussão mais aprofundada que os ajustes de contas habituais. Mas esta dimensão bem real do problema, geralmente, mascara uma outra, não menos importante. Mascara-a tanto melhor quanto o próprio Lenine tacteia e nem sempre mede o alcance de suas próprias inovações. Assim, acreditando parafrasear um texto canónico de Kautsky, ele modifica-o de forma essencial. Onde Kautsky escreve que “a ciência” chega aos proletários “do exterior da luta de classes”, introduzida pelos “intelectuais burgueses”, Lenine traduz que a “consciência política” (e não a ciência) vem do exterior da luta económica (e não da luta de classes, que é tanto política como social), levada não pelos intelectuais enquanto categoria sociológica, mas pelo partido enquanto actor especificamente político.
A diferença é substancial. Ela diz respeito à especificidade do político.
Este pensamento rompe com a tradição dominante do movimento socialista da época. No seu comentário no aniversário do Manifesto Comunista, António Labriola afirma terminantemente, em 1898, que “a conjugação desejada dos comunistas e dos proletários é doravante um facto consumado”. Com a entrada em cena da “massa operária”, o movimento tornou-se mais lento, e o partido de massa aparece como uma espécie de encarnação política da classe. A ideia inspira-se em fórmulas de Marx, segundo as quais a organização progressiva do proletariado em partido político e em classe eram sinónimos, unindo-se no partido os seus seres social e político.
Lenine sublinha, ao contrário, a ruptura da continuidade entre o conflito “económico” imediato e o conflito político mediado. Recusa ainda mais explicitamente “confundir o problema das classes e o dos partidos”, o conteúdo social e a sua expressão política. De facto, a luta de classe não se reduz ao conflito do operário contra um patrão, “mas contra a classe capitalista inteira”. Dessa forma, a social-democracia revolucionária, enquanto partido político, “representa” a classe trabalhadora, nas suas relações não somente com dado grupo de empregadores, mas também com “todas as classes da sociedade contemporânea e com o Estado enquanto força política organizada’ (Lenine. Œuvres V, p.408). Trata-se de fundir num todo indissolúvel este movimento espontâneo com a actividade do partido revolucionário; daí o papel da imprensa, como organizadora colectiva, de unificar estas lutas e inscrevê-las numa visão de conjunto. A política já não é, portanto, o simples prolongamento e o reflexo da luta económica, mas uma arte particular da iniciativa e do movimento, da delimitação e da combinação das forças. Trata-se de se delimitar antes de se unir e para se unir, “de utilizar todas as manifestações de descontentamento e de trabalhar até os menores elementos de um protesto, mesmo embrionário”, de conceber a luta política como “muito mais ampla e complexa que a luta dos operários contra o patronato e o governo” (idem, p. 440/463).
Quando o jornal Rabotchéié Diélo deduz os objectivos políticos da luta económica, Lenine reprova-o por “rebaixar o nível da actividade política multiforme do proletariado”. Ele considera ilusório acreditar que “o movimento puramente operário” seja, só por si, capaz de elaborar uma ideologia independente. O desenvolvimento espontâneo do movimento operário apenas conduz “à subordinação à ideologia burguesa”. A ideologia dominante não é uma questão de manipulação das consciências, mas um efeito objectivo do fetichismo da mercadoria. Não há outra saída deste círculo de ferro do fetichismo e da sua servidão involuntária, senão pela elaboração das categorias da ruptura, da crise, da revolução, e pela luta política dos partidos.
A distinção do político e do social
Tudo conduz portanto, em Lenine, a compreender que a política tem a sua gramática e a sua sintaxe próprias. Ela é o lugar de uma elaboração, de uma aparição, de uma representação, onde se trata de apresentar aquilo que está ausente. “A divisão em classes é certamente, afinal de contas, a base mais profunda do agrupamento político”, mas este “afinal de contas” é “a luta política apenas que estabelece” (Lenine. Œuvres VII, p. 41). Assim, “o comunismo surge literalmente de todos os pontos da vida social; ele brota decididamente por toda parte. Que se feche com um cuidado particular uma saída, o contágio achará uma outra, às vezes a mais imprevisível” (Lenine. Œuvres XXXI). É por isso que “nós não sabemos e nem podemos saber qual é a faísca que iniciará o incêndio”. Daí a palavra de ordem que resume, segundo Tucholsky, a atitude política de Lenine: “Estejam prontos!”. Estejam prontos para o imprevisível, para o improvável, para o acontecimento!
Se a política é, por vezes, definida como “a expressão concentrada da economia”, ela não pode deixar “de ter primado sobre a economia”. “Preconizando a fusão dos pontos de vista económico e político”, Bukharin ao contrário “escorregou para o eclectismo”. É também por isso que, em 1921, o próprio nome da Oposição Operária é criticado como “um nome desagradável”, que rebaixa novamente o político ao social, e pretende que a gestão da economia nacional caiba directamente aos “produtores agrupados em sindicatos de produtores”.
Para Lenine, a história das revoluções é “sempre mais rica de conteúdo, mais variada, mais multiforme, mais viva, mais engenhosa do que pensam os melhores partidos, as vanguardas mais conscientes das classes mais avançadas”. Há uma razão profunda para isso: “As melhores vanguardas exprimem a consciência, a vontade, a paixão, a imaginação de dezenas de milhares de homens, enquanto a revolução é – nos momentos de exaltação e de tensão particulares de todas as faculdades humanas – a obra da consciência, da vontade, da paixão, da imaginação de dezenas de milhões de homens, aguilhoados pela mais áspera luta de classes”.
Ele tira daí duas conclusões práticas de grande importância: “A primeira é que a classe revolucionária, para cumprir as suas tarefas, deve saber apropriar-se de todas as formas e de todos os aspectos, sem excepção, da actividade social; a segunda, é que a classe revolucionária deve estar pronta para substituir rápida e bruscamente uma forma pela outra” (Lenine, Œuvres XXXI, p 92).
Nesta problemática, a linguagem política tem seus lapsos reveladores. Permite uma interpretação não sociológica do papel dos estudantes e dos intelectuais nas lutas sociais. É por isso que “a expressão mais rigorosa, mais completa e melhor definida da luta política de classe, é a luta de partidos” (Lenine. Œuvres X, p. 15). No debate de 1915 sobre a questão do ultraimperialismo, Lenine percebe assim o perigo de um novo economicismo, apolítico, segundo o qual a maturidade das relações capitalistas e a sua centralização mundial tornariam impossíveis certas formas políticas, e prenunciariam um colapso quase natural do sistema. Para ele, o desenlace é decidido nos termos específicos da luta política. Reencontramos essa mesma preocupação, contra qualquer redução do político ao social ou à história, nas discussões com Trotsky sobre a caracterização do Estado dos sovietes. Trotsky fala de Estado operário, “mas este Estado operário, rectifica Lenine, não é completamente operário, eis a questão” (Lenine, Œuvres XXXII, p. 16). Para apreender a sua singularidade, as categorias sociológicas são menos convenientes do que as categorias propriamente políticas. A sua fórmula é, então, mais descritiva e mais complexa, irredutível em todo caso a um conteúdo social unilateral: este será um Estado operário e camponês com “deformações burocráticas” e “eis a transição em toda sua realidade”.
As implicações desta visão do político podem ser encontradas em quase todas as controvérsias importantes da época. No debate sobre os sindicatos, em que Trotsky defende, em nome do comunismo de guerra, a militarização dos sindicatos, Lenine sustenta uma posição original (ver Pierre Broué, Trotsky, Fayard, e também Ernest Mandel). Porque não é um órgão político de poder, o sindicato não poderia transformar-se em “organização de Estado coercitiva”. Ele situa-se no sistema “entre o partido e o Estado”, se “podemos exprimir-nos dessa forma” (Lenine. Œuvres XXXII. p. 12). Nos primeiros anos da revolução não havia restrição do direito de greve e o conselho dos comissários chegou a organizar um fundo de greve (Marcel Liebman, Le léninisme sous Lénin, Seuil, II, p. 198). Da mesma forma, a questão nacional é abordada na sua especificidade política, como questão democrática, fora de todo o esquema sociológico abstracto. É preciso incluir nela o elemento psicológico. Se a menor coerção entra nesta questão, ela suja, estraga e reduz a nada o indiscutível alcance progressivo da centralização.
Uma abertura à pluralidade da representação
Uma insistência tão constante em Lenine na distinção entre o partido e a classe, na particularidade da luta política e da sua linguagem própria, conduz logicamente ao pensamento da pluralidade e da representação. Se o partido não é a classe, decorre daí que uma mesma classe pode representar-se politicamente através de diferentes partidos políticos. Decorre também que “a representação do social na política” deve ser objecto da elaboração de regras e de instituições. Lenine não vai, é certo, até aí. Não deixa por isso de abrir um espaço original do político e de explorar as suas pistas.
Assim, submete a representação a regras inspiradas na experiência da Comuna de Paris, que visam limitar a profissionalização do político: salários idênticos ao de um operário qualificado, vigilância contra os privilégios de função, responsabilidade diante dos representados. Contrariamente a uma lenda persistente, não preconizava o mandato imperativo. Nem no interior do partido: “os poderes delegados não devem ser limitados por mandatos imperativos”; no exercício dos seus poderes, “eles são completamente livres e independentes”. Nem ao nível dos órgão do Estado, onde o “direito de substituição dos deputados” não se confunde com um mandato imperativo que reduziria a representação ao simples reflexo corporativo de interesses particulares e de visões locais, sem síntese possível, esvaziando a deliberação democrática de toda a substância e de todo o significado.
Quanto à pluralidade, Lenine afirma sistematicamente que “a luta de nuances” no partido é “inevitável e necessária”, enquanto se desenvolver nos limites “aprovados por um acordo comum”. Ele defende também “a necessidade de assegurar, nos estatutos do partido, os direitos de toda a minoria a fim de desviar do curso filisteu habitual, de escândalos e querelas mesquinhas, as contínuas e inesgotáveis fontes de descontentamento, de irritação e de conflito, a fim de conduzi-las ao canal, ainda não habitual, de uma luta regular e digna em defesa de convicções. Entre estas garantias absolutas, nós incluímos a outorga à minoria de um (ou de vários) grupo literário, com direito de representação no congresso e direito de expressão completo” (Lenine, Œuvres VII, p. 470). De forma mais geral, ele não hesita em preconizar um referendum no partido sobre questões importantes.
Mesmo a famosa disciplina na acção é menos intangível do que quer a lenda. Conhece-se a indisciplina suprema de Zinoviev e Kamenev, tomando publicamente posição contra o projecto insurreccional em Setembro de 1917, sem serem alijados com carácter permanente das suas responsabilidades. O próprio Lenine reivindica, nestas circunstâncias extremas, um direito pessoal à desobediência. Ele ponderava demitir-se das suas responsabilidades para retomar a sua “liberdade de agitação” nas fileiras do partido, e escreve no momento crítico ao Comité Central: “Eu parti para onde vocês não queriam que eu fosse [ao Smolny]. Até a vista”.
Pressionado pela sua própria lógica a elaborar a pluralidade da representação, Lenine chega ainda a estabelecer os fundamentos teóricos de um pluralismo por princípio. Há pelo menos duas razões para isso. Primeiro, ele herdou da Revolução Francesa a ilusão segundo a qual, uma vez derrubados os opressores, o processo de homogeneização da classe não é senão uma questão de tempo. Deixa de haver contradições imagináveis no seio do povo. Será preciso esperar por Trotsky e pelos anos 30 para se ver o pluralismo fundado por princípio na constatação de uma heterogeneidade duradoura das forças sociais, num contexto internacional determinado; porque uma classe permanece “dilacerada por antagonismos internos”, ela pode formar “vários partidos” (Trotsky, A revolução traída).
Em segundo lugar, a distinção entre o social e o político não impede uma inversão da proposta tradicional segundo a qual o político se dissolve no social. Com a instauração da ditadura do proletariado, aparece doravante o risco simétrico da absorção do social pelo político. O próprio Lenine não repetiu o equívoco da extinção da política e do Estado, prognosticando “a extinção da luta de partidos no seio dos sovietes”? (Lenine, Œuvres XXV, p. 335).
Marcel Liebman assinala que, em O Estado e a revolução, os partidos perdem a sua função em detrimento de uma democracia directa que já não é inteiramente um Estado separado. Contrariamente às esperanças revolucionárias iniciais, com a contra-revolução burocrática, a estatização da sociedade ultrapassará a socialização do Estado. É ainda Trotsky que tirará disso a constatação mais chocante: “O Estado sou eu! É uma fórmula quase liberal em comparação com as realidades do regime totalitário de Estaline… Diferente do rei-sol, Estaline pode afirmar com razão: a sociedade sou eu!” (Trotsky, Stalin).
Paradoxalmente, tanto Lenine como Marx pecam tanto pelas suas inclinações libertárias quanto pelo seu lado autoritário. Esta é sua fraqueza. A questão é tragicamente complicada. Trata-se de fundar uma nova legitimidade irredutível ao jogo ordinário dos partidos e do parlamentarismo, de inventar uma forma de representação que reconcilie o homem e o cidadão, o representante e o representado. Diante da extinção da camada “incrivelmente pequena” dos operários de vanguarda, dizimada pela guerra civil e pela fome, Lenine resigna-se a uma ditadura do partido, a uma inversão da pirâmide do poder, que não é o seu projecto original. Desde então, a revolução assenta sobre a sua ponta, num equilíbrio catastrófico, pateticamente ilustrado pelo seu último combate (Moshe Lewin, Le dernier combat de Lénine, Éditions de Minuit).
A porta estreita da crise revolucionária
Quer se trate da representação, da organização ou da estratégia, o pensamento político de Lenine é a cada momento a elaboração de uma temporalidade específica. Culmina na compreensão de crises, de guerras e de revoluções, do momento insurreccional decisivo.
Do ponto de vista reformista maioritário na Segunda Internacional, a guerra não é um acontecimento inteiramente fundador, mas um parêntesis a ser fechado com a maior rapidez no desenrolar do progresso humano. É preciso, portanto, que ela acabe o mais depressa possível para que as coisas retomem seu curso normal. Este pacifismo difere gritantemente do derrotismo revolucionário então pregado por Lenine. Para ele, não se trata de devolver, pela paz, a luta de classes a uma suposta normalidade. A guerra faz parte da luta, e a questão é apreender a novidade desta forma agónica do conflito para abrir uma situação revolucionária. Duas visões opostas do mundo, da história, e da temporalidade política, traduzem-se aqui em orientações práticas contraditórias.
Karl Kautsky é o representante mais prestigioso da posição reformista clássica, então dominante na social-democracia internacional. No seu célebre O caminho do poder, afirma que o objectivo socialista não pode, é verdade, ser atingido senão por uma revolução; mas “não depende de nós fazer uma revolução”. O partido contenta-se em acompanhar e esclarecer como pedagogo as lutas dos explorados. Esta tese tem, é certo, sua parte de verdade. As lutas não se decretam. Elas eclodem: “isto” acontece, “aquilo” passa-se. Mas para Kautsky, o fenómeno objectivo separa-se da subjectividade revolucionária. Se fala de estratégia e de guerra de desgaste, é com o cuidado de nunca ter que dar batalha.
Esta ortodoxia anterior a 1914 reivindica a herança de Marx e Engels. Em 1851, num contexto de refluxo revolucionário, este último definia a revolução como “um fenómeno natural, comandado por leis físicas”. A consciência de classe aparece, então, como uma espécie de produto natural do desenvolvimento histórico e do crescimento sociológico do proletariado. É pela fusão tendencial entre a classe e o seu partido que parece resolver-se a contradição inextricável entre a sua vocação revolucionária e a sua sujeição ao fetichismo da mercadoria e ao despotismo da empresa: “Para a vitória definitiva das propostas enunciadas no Manifesto, Marx baseava-se unicamente no desenvolvimento intelectual da classe operária que deveria resultar da acção e da discussão comuns” (Engels. Prefácio de 1890 ao Manifesto). Se a sua luta contra a burguesia “começa com a sua própria existência”, o proletariado passa, de facto, “por diferentes fases de evolução”. Com o desenvolvimento industrial, “a força dos proletários aumenta e eles ganham mais consciência disso”. A solução do enigma estratégico encontra-se, portanto, na “organização gradual e espontânea do proletariado em classe”. É assim que “o proletariado de cada país deve, em primeiro lugar, conquistar o poder político, tornar-se classe dirigente da nação, tornar-se ele próprio a nação”. Entretanto, esta “organização do proletariado em classe, e portanto em partido político, é incessantemente destruída de novo pela concorrência dos próprios operários entre si”.
Círculo vicioso, sem solução numa temporalidade uniforme
Rosa Luxemburgo foi uma das primeiras a compreender, desde as controvérsias de 1901-2, o que estava em jogo neste discurso da ortodoxia. O tempo linear do progresso parece jogar a favor da social-democracia, que ganha terreno e obtém posições institucionais, mas ele segrega, ao mesmo tempo, uma pesada burocracia conservadora, cuja sorte se torna dependente da do Estado. Rosa Luxemburgo será a melhor preparada para compreender as bases profundas da desconcertante capitulação de Agosto de 1914. Por isso ela está atenta às rupturas e inovações surgidas da própria luta. 1905 na Rússia abre, a seus olhos, “uma nova época na história do movimento operário”, e introduz um elemento novo, “a manifestação da luta proletária na revolução”.
Em que condições poderá o proletariado quebrar as correntes da opressão e da alienação? A greve geral é a forma irruptiva que torna possível a estratégia. Uma libertação súbita da energia acumulada permite então uma modificação rápida das correlações de forças e desloca as peças do tabuleiro.
Mais lento para tomar consciência do conservadorismo burocrático e da sua relação com uma concepção uniforme do tempo histórico, Lenine tira daí, todavia, consequências mais radicais. O Estado constitui um núcleo estratégico decisivo da luta revolucionária. Mas não pode ser mudado a qualquer momento. Tentar este objectivo fora do tempo significaria simplesmente opor uma vontade arbitrária a uma passividade inerte, uma subjectividade absoluta a uma objectividade morta, como se a questão do poder estivesse permanentemente colocada na sua forma paroxística. As duas abordagens baseiam-se numa metafísica dualista do sujeito e do objecto. É por isso que a rotina parlamentar e a gesticulação esquerdista são complementares.
Lenine desenvolve, ao contrário, a noção estratégica de “crise revolucionária”. Em certas condições excepcionais e particulares, o Estado torna-se vulnerável, o equilíbrio de forças torna-se crítico. Não importa quando: em toda a luta há ritmo, pulsações e batimentos, que a noção de crise permite pensar: “Toda a desordem dos ritmos produz efeitos conflituais. Desajusta e perturba. Pode também produzir um buraco no tempo, a ser preenchido por uma invenção, uma criação. O que só acontece, individualmente e socialmente, passando por uma crise” (Henri Lefebvre, Eléments de rythmanalyse, p. 63).
Enquanto a política parlamentar conhece apenas uma dimensão temporal, a do encadeamento monótono das sessões e das legislaturas, o tempo das revoluções é concentrado, redobrado sobre si mesmo. Chega a acontecer que “meses de revolução educam melhor e mais completamente os cidadãos que dezenas de anos de marasmo político” (Lenine, Œuvres VIII p. 572). Em 1905, Lenine acompanha Sun Zi no elogio da prontidão. É preciso então “começar na hora”, “imediatamente”: “formar imediatamente, em todos os lugares, grupos de combate”.
A crise revolucionária é pluritemporal. Nela, misturam-se e combinam-se diversos tempos. A revolução na Rússia não é um simples prolongamento ou realização tardia da revolução burguesa, mas “um encadeamento” de duas revoluções. Esta ideia resume o espírito das famosas Teses de Abril (1917). Decorre logicamente do desenvolvimento desigual e combinado do espaço-tempo de uma época.
A política se mostra, então, moldada por ritmos e relevos. A arte da palavra de ordem é uma arte da conjuntura. Que a catástrofe possa ser conjurada depende desse sentido agudo do momento. Tal palavra de ordem, válida ontem, já não é válida hoje, mas voltará a ser amanhã: “Até 4 de Julho [1917], a palavra de ordem da passagem da totalidade do poder aos sovietes era correcta”. Depois, já não é. Do mesmo modo: “Nesse momento, e só nesse momento, talvez durante alguns dias no máximo, ou durante uma semana ou duas, um tal governo pudesse…” (Lenine, Œuvres XXV, p. 277).
Alguns dias, uma semana!
Em 29 de setembro de 1917, Lenine escreve ao Comité Central, que tergiversa: “A crise está madura”, esperar torna-se um crime. Em 1 de Outubro, ele apressa-se em “tomar o poder imediatamente” em “passar imediatamente à insurreição”. Alguns dias mais tarde: “Eu escrevo estas linhas em 8 de Outubro… O sucesso da revolução russa depende de 2 ou 3 dias de luta”. E ainda: “Eu escrevo estas linhas na tarde de 24, a situação é crítica até ao limite. É claro agora que atrasar a insurreição é a morte. Está tudo por um fio”.
Deve-se agir “esta noite, esta madrugada”.
É notável constatar em que medida a elaboração desta problemática nos anos da guerra e a oposição cada vez mais consciente à ortodoxia reinante estão ligadas, em Lenine, à releitura da Lógica de Hegel, que Marx também releu “por acaso” no momento da crise económica de 1857/8 (sobre isso, ver os Cadernos filosóficos, de Lenine; e também, Michael Löwy, Da Grande Lógica de Hegel à Estação Finlândia de Petrogrado, bem como o meu ensaio em Stratégie et parti). Desde 1915 ele sistematizou a ideia de crise revolucionária, que o obcecou ao longo de todo o ano decisivo de 1917. É esta ideia que torna concebível a conquista improvável do poder por uma classe submetida ordinariamente ao círculo de ferro da exploração e da alienação.
É a chave da questão vertiginosa: como de nada tornar-se tudo?
Mas o que é afinal a crise? Lenine não dá uma definição precisa. Enumera antes as suas condições algébricas gerais; quando os de cima já não podem…; quando os de baixo já não querem…; quando os do meio hesitam e podem balançar… As três condições são indissociáveis e combinadas. Trata-se, então, não de um movimento social que se aprofunda, mas especificamente de uma crise política da dominação, de uma crise do conjunto das relações sociais, cuja forma é uma “crise nacional”. Esta última expressão aparece frequentemente nos seus textos.
Porquê “crise nacional” e não apenas “crise revolucionária”? É preciso, para Lenine, destruir o Estado burguês como um corpo separado. Mas substituí-lo por quê? É aqui que entra a “crise nacional”. Na prática, a dualidade de poderes inerente à situação revolucionária só pode ter um desenlace vitorioso se certas funções vitais (abastecimento, transportes, segurança) do velho aparelho de Estado paralisado ou parcialmente deslocado são preenchidas por órgãos novos, mais democráticos e eficazes: a Comuna de Paris, os Sovietes de 1905, os conselhos operários de Turim… Estes órgãos são criações originais da própria luta, sem normas ou modelos pré-estabelecidos.
Mas para que uma crise possa desembocar numa vitória, falta às três condições enumeradas um quarto elemento que as combina: um projecto e uma vontade política, capazes de decidir no instante crítico entre vários possíveis. O partido político não tem, em Lenine, a função quase que exclusivamente pedagógica que lhe atribui Kautsky. Não é nem um simples reflexo do movimento social, nem um modesto portador de ideias, mas uma peça central do dispositivo estratégico. Quem diz estratégia, diz decisão, projecto, correlação de forças. A educação faz parte disso. Mas quem diz estratégia, diz também batalhas, provas em que o tempo não escoa de maneira uniforme, onde ele conta a dobrar, a triplicar. Se a revolução é social e política, o seu destino definitivo é decidido militarmente, na acção insurreccional de Outubro, que agarra a ocasião pelos cabelos, na precariedade do instante.
A experiência é eloquente. A escolha do momento é absolutamente crucial, como atestam as exortações de Lenine ao Comité Central reticente, durante os meses de Setembro e Outubro. É o momento! É preciso decidir-se! Agora. Não amanhã, nem depois de amanhã. Hoje. Porque, precisamente, o tempo não é indiferenciado. Deve-se agarrar o momento oportuno.
É aí que Lenine faz política e elabora a sua temporalidade própria. A de um tempo partido.
A burocracia sonha ter o acontecimento sob seu controle. Espera sem surpresa a vinda do que foi anunciado, e não concebe que o que foi anunciado possa não chegar. O revolucionário espreita o acontecimento potencial na crise. No momento da decisão, o julgamento manifesta o presente de uma presença. Esta acontecimentalidade irrevogável inaugura situações radicalmente novas onde “a nossa herança não é precedida de nenhum testamento”, porque o próprio acontecimento esclarece as suas condições de aparição. É por isso que a revolução constitui, segundo Hannah Arendt, o “verdadeiro acontecimento, cujo alcance não depende da vitória ou da derrota”.
Fonte: “Marxismo, Modernidade e Utopia”, Editora Xamã, São Paulo, 2000).
Transcrição: Daniel Monteiro- Autorizada por José Corrêa Leite, organizador da coletânea.
Publicado nos Cadernos Em Tempo n° 298, novembro 1997. Originalmente publicado na revista francesa Critique Communiste n° 150, outono de 1987. Transcrição de João Machado Borges Neto.
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- Eu tive a chance de escrever minha dissertação de mestrado sobre “A noção de crise revolucionária em Lenin” sob a direção de Henri Lefebvre, em … 1967-1968!