Maio de 68

Uma página na história mundial de lutas

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Em 15 de março de 1968, Pierre Viansson-Ponté escrevia no Le Monde um artigo polêmico, intitulado « Quando a França se entedia… ». O mundo virava de ponta-cabeça – no Vietnã, na Alemanha, nos guetos norte-americanos, no México e em Praga – e aparentemente nada acontecia na França. Esse marasmo político e intelectual, no entanto, começou dali a uma semana a ser abalado. Em 22 de março começavam a rolar as primeiras peças de uma grande partida entre os estudantes, os operários e o poder. De maio a junho, a França, sob o afã inicial da juventude, vai arder de imaginação e resistência política, nos palcos da Sorbonne, das fábricas e das ruas do quartier Latin em Paris. Maio de 68 é, assim, na verdade, uma página de uma história mundial de contestação à guerra, à sociedade de consumo e ao autoritarismo. Um velho mundo ruía. Quem conta aos leitores de Em Pauta um pouco dessa história, regada a preciosas fontes literárias e cinematográficas, foi também líder estudantil e personagem da « noite das barricadas ». Nada mais nada menos que o filósofo e professor de Paris 8, Daniel Bensaid, também um dos porta-vozes da Liga Comunista Revolucionária (LCR).

EM Pauta : Maio 68 começou, de fato, no mês de março na Universidade de Nanterre. Prof. Bensaid, você, junto com outros estudantes, desafiaram ali as autoridades universitárias. Ao que vocês disseram « não » ?

Daniel Bensaïd : Dissemos « não », na realidade a muitas coisas. A cronologia, porém, da deflagração de um acontecimento como Maio de 68 constitui uma questão um tanto quanto enigmática. Pode-se falar no 22 de março, mas, de certa maneira, o processo começou antes, durante todo o ano que precedeu o início do movimento, a explosão de 22 de março, o 10 de maio, as barricadas, o 17 de maio, a greve geral, etc. Vê-se, ao longo de 1967, o surgimento de diferentes elementos que vão se reunir em 68.

Primeiramente, dissemos « não » à guerra colonial e à guerra imperialista. O movimento de solidariedade e contra a guerra do Vietnã foi desencadeado, na França, por exemplo, após a guerra da Argélia. Trata-se, portanto, de uma geração que começou a se formar no movimento contra a guerra da Argélia [A guerra pela independência da Argélia envolveu um período de lutas entre 1954 e 1962, levadas a cabo pela FLN/Frente Nacional de Libertação, contra a colonização francesa do país, desde 1830]. Assim, durante todo o princípio dos anos 60, lutou-se contra a guerra do Vietnã. No Campus de Nanterre, havia algumas dezenas ou uma pequena centena de estudantes bastante ativos, principalmente o pequeno grupo anarquista em torno de Cohn-Bendit e nós, que estávamos na Juventude Comunista Revolucionária (JCR), depois de termos sido expulsos do Partido Comunista em 1966.

No começo de fevereiro de 68, fomos todos à manifestação internacional de Berlim a favor do Vietnã. Hoje tornaram-se quase banais as manifestações européias. Há fóruns sociais, entre outros. Na época, foi um evento duplamente simbólico : por ser uma manifestação européia – visto que não havia muitas – sobre o Vietnã e em Berlim, que era a cidade entre a Europa Oriental e Europa Ocidental. Berlim era a vitrine do Ocidente em relação à Europa do Leste. Havia ali, então, toda uma concentração de símbolos nesta manifestação em Berlim, de onde voltamos bastante entusiasmados e dinâmicos. Isto certamente preparou-nos moralmente e teve, sem nenhuma dúvida, um papel na preparação subjetiva da explosão que se produziu em março.

Em segundo lugar, a razão mais imediata foi um protesto contra o que se tornou a universidade, o que se passou um pouco por toda parte nos anos sessenta, quer dizer, a passagem de uma universidade de elite, de reprodução das elites dominantes, para uma universidade de massa, com uma massificação notadamente dos estudos em Ciências Sociais : Sociologia, Psicologia, etc. Há um romance muito famoso na França – não sei se ele era conhecido, no Brasil, nessa época –, que se chama As Coisas, de Georges Perec (1936-1982) [Ainda sem tradução no Brasil, Les Choses. Une histoire des années soixante, foi publicado originalmente pelas edições Julliard.]. O romance apareceu três anos antes, em 1965. Os personagens são justamente estudantes de Sociologia que começam a fazer marketing, pesquisa de opinião sobre o consumo. Eles mesmos acham-se fascinados pelos objetos e mercadorias. Havia, então, uma crítica muito forte e ativa durante todo o ano de 67 e também de 68 contra as reformas universitárias, e em particular nas universidades de Filosofia e Ciências Humanas, havia a recusa de se tornarem « engenheiros » ou cães de guarda da sociedade de consumo. Les Chiens de garde era o título de um ensaio de Paul Nizan – colega de estudos de Jean-Paul Sartre, mas muito mais engajado que Sartre na época –, o qual havia feito nos anos 30 este livro que é um panfleto bastante duro contra os « mandarins » da hierarquia universitária. Havia, portanto, em 68, toda uma crítica da universidade. Dava-se, nesse sentido, ênfase também na questão da sexualidade e na composição mista da universidade, como parte da crítica de transformação da universidade.

Nanterre foi um dos primeiros campus fora da cidade, ali onde antes era praticamente um terreno vazio. Levava-se muito tempo para chegar à Nanterre. Havia aí um outro simbolismo também : a universidade foi construída no meio de favelas de trabalhadores argelinos, de onde partiram as manifestações contra a guerra da Argélia e em apoio à independência do seu país, as quais tiveram cem mortos em Paris em 1961. Este tipo de campus hoje se generalizou, mas, naquela época, foi um dos primeiros a ter estas características de um pólo universitário fora da cidade, onde os estudantes não iam somente para estudar. Era um lugar de vida. Passávamos ali o dia inteiro. Todas as reivindicações relativas à questão universitária, aos problemas de formação, e ainda sobre a vida cotidiana e a sexualidade encontravam-se lá.

E por fim, como último elemento que participou da explosão de 68, houve uma multiplicação de greves operárias durante todo o ano de 67 – e isto era novo na França, após um longo período em que o movimento operário tinha estado bem pouco ativo –, notadamente nas indústrias automobilísticas e não nos centros industriais habituais, mas em Caen, numa pequena cidade que se chama Redon, em Besançon ou Le Mans, cidades do interior. Havia lá novas implantações industriais, no ramo da indústria automobilística em particular, com uma classe operária jovem que vinha do campo ali próximo, a qual travou lutas bastante duras, com quase insurreições e revoltas operárias no outono de 67. Assim, sempre houve na universidade de Nanterre uma atividade de solidariedade, como recolher dinheiro, por exemplo, para todas essas lutas operárias. Pode-se dizer, então, que o acontecimento começa em março de 68, mas como resultado de todo um ano de fermentação.

EM Pauta : As pedras atiradas pelos estudantes durante a « noite das barricadas », em 10 de maio, na Sorbonne, visavam, além da polícia, um velho mundo e uma velha política, representados à direita pelo presidente De Gaulle e à esquerda pelos métodos stalinistas. Isto significava « ser realista » e « exigir o impossível » ? Qual é a herança deste sonho ?

Daniel Bensaïd : Esta história de barricadas foi, antes de tudo, uma manifestação defensiva. Parece bastante ofensivo, quando, na realidade, o que estava posto era dar a volta ou não em torno da Sorbonne que tinha sido fechada, ou seja, defender a liberdade universitária. Hoje tornou-se infelizmente banal, quando há uma luta estudantil, que o presidente da universidade [Na França, não há “reitores”, há presidentes das universidades] chame a polícia – vimos isto no último outono, na ocasião das lutas da juventude sobre o Contrato Primeiro Emprego (CPE) em 2006. Naquela época, havia o que se chama « franchise » – um termo francês da Idade Média, que significa independência e imunidade especial, acordada publicamente. A autonomia universitária era considerada um bem e território sagrado, ou seja, a polícia não podia entrar na universidade. Desse modo, como a Sorbonne estava ocupada pela polícia e a Universidade de Nanterre estava fechada, as barricadas foram, antes de tudo, um grande protesto democrático contra a repressão e pela reconquista do território universitário. Foi algo improvisado, espontâneo e não produto de uma estratégia militar. Mas pode-se interpretar simbolicamente. Parece estranho, mas ninguém poderia dizer quem teve a idéia de arrancar o primeiro paralelepípedo e de construir a primeira barricada. São barricadas simbólicas. Eram, em geral, muito bonitas. Certamente, no inconsciente coletivo, há toda uma história de Paris e das barricadas : 1848, a Comuna, etc. Há, assim, seguramente uma memória coletiva que promoveu o gesto das barricadas. Para dar uma idéia de até que ponto as barricadas eram mais simbólicas que militares – mesmo se combatemos, de fato –, vale dizer que uma das mais belas foi construída diante de uma rua sem saída, o que chega a ser, no limite, quase irônico e engraçado. Tudo isto evidentemente foi contra a direita. Havia, é verdade, uma revolta contra o regime gaullista, o conservadorismo, a velha França e o lado repressivo.

Contra a esquerda, depende de quem. Os anarquistas e nós, que, na época, tínhamos saído do Partido Comunista, já havíamos nos apropriado de uma crítica do stalinismo. Havia grandes discussões. Tínhamos lido o livro de Pierre Broué [1926-2005] sobre a história do Partido bolchevique [Le Parti Bolchevique – Histoire du PC de l’URSS, publicado pelas edições Minuit, em 1963, onde ele denuncia os erros e crimes do stalinismo], mas essa posição era ainda bastante minoritária. Diria que havia uma crítica da esquerda do governo, principalmente do Partido Comunista. É preciso dizer, talvez, a um leitor brasileiro, que a esquerda hegemônica na França era sobretudo o Partido Comunista. O Partido Socialista, em parte responsável pelo governo da guerra da Argélia, tinha saído bastante desacreditado e frágil da guerra da Argélia. O grande partido de esquerda era o Partido Comunista que perfazia em torno de 25 % dos votos nas eleições e controlava de longe totalmente o principal sindicato, a CGT (Confederação Geral do Trabalho). A esquerda e o movimento operário eram, então, principalmente o Partido Comunista.

A crítica do Partido Comunista, no início, existia entre os estudantes, mas a crítica do stalinismo era minoritária : consistia apenas no pequeno grupo anarquista e na JCR (Juventude Comunista Revolucionária). Tínhamos sido expulsos do PC em 1965, de certa maneira, felizmente, por duas razões : de um lado, criticávamos o PC ( havia aderido a ele, em 1962, por causa da guerra da Argélia), porque ele tinha sido muito pouco atuante contra a guerra da Argélia, pouco solidário com os argelinos e ainda menos atuante contra a guerra do Vietnã ; em segundo lugar, havíamos criticado o PC, porque ele tinha apoiado a candidatura de François Mitterrand para as eleições presidenciais de 1965, ao invés de lançar um candidato próprio ; e em terceiro, talvez menos importante diretamente, criticávamos o PC pelos seus traços conservadores, pois, se havia um conservadorismo de direita, uma tradição paternalista e patriarcal, que gerou o gaullismo, existia também isto à esquerda no PC. As organizações de juventude do PC, por exemplo, não eram mistas. Lutávamos por turmas mistas no campus e na cidade universitária em Nanterre, enquanto nas Juventudes Comunistas (eu estudava num Liceu misto em 1962, quando aderi à JC. Foi necessário, então, brigar, porque havia um núcleo de moças da França e um outro para os rapazes) prevalecia uma espécie de moral familiar conservadora.

Tínhamos esta crítica no começo do movimento, porém para a grande maioria dos estudantes, que entraram na luta por indignação, contra a repressão e a violência policial durante a noite das barricadas, dava-se justamente o contrário. O sentimento dominante era a mitologia da classe operária, circulando um certo tipo de rumor a noite inteira : todo mundo dizia que caminhões da periferia, dos bairros operários, viriam em socorro dos estudantes. Claro que isto jamais aconteceu. O PC, que teria meios para isso, nunca pensou em fazê-lo. Pelo menos, aconteceu ali uma espécie de aprendizado e de revelação para setores importantes do movimento estudantil e pequenos setores do movimento operário, os quais descobriram que o PC e os sindicatos frearam o movimento, para que fosse apenas algo reivindicativo, tendo aceitado parar a greve e participar das eleições, segundo a proposição de De Gaulle de 30 de maio. Descobriram, então, que o PC não era um partido que queria realmente mudar a sociedade, embora dispusesse dos meios. Deu-se, assim, o início do declínio do PC na França. Não se pode esquecer, contudo, que um ano mais tarde, em 1969, na eleição presidencial, o candidato do Partido Comunista ainda teve 21 % dos votos. Enquanto em 1936 ou em 1945, nas grandes lutas anteriores, o PC tinha conseguido recrutar os segmentos mais combativos do movimento operário, em 1968 ele ganhou novos membros, mas começou a perder sua hegemonia e seu monopólio sobre o movimento operário e também sindical, porque novas correntes de esquerda apareceram no segundo mais importante sindicato, a CFDT (Confederação Francesa Democrática do Trabalho). Pouco a pouco, ele perdeu sobretudo sua autoridade e legitimidade junto a uma parte importante da juventude.

EM Pauta : Como os operários e os estudantes deram-se as mãos em Maio de 68 ? Qual foi a importância do movimento estudantil nesse processo ? Foi uma aliança inédita ? O que ela trouxe de novo para as gerações seguintes nesses dois fronts ?

Daniel Bensaïd : De um lado, o que é novo é consequência da transformação mesma de universidade. Em apenas alguns anos, de 1957 a 1968, ou seja, em dez anos, o número de estudantes foi multiplicado por cinco. Isto significou evidentemente uma democratização, embora ainda bastante limitada dos estudos de nível superior, na medida que uma pequena parte de estudantes das camadas populares vinha pelo sistema de bolsa. Era residual, mas mesmo assim um começo. Uma grande quantidade de estudantes começava a compreender que ser estudante e fazer estudos de nível superior na universidade não queria dizer que se ia fazer parte da elite dirigente da Nação, mas, talvez, de um novo proletariado intelectual. Este foi um dos grandes temas de discussões na época por toda a Europa e alhures. Havia começado, em 1967, movimentos de universidade crítica na Itália, na Universidade de Trente, em Berlim, etc., que se inspiravam no trabalho de sociólogos como Henri Lefebvre ou filósofos como Herbert Marcuse. Tais estudantes, que viam que a sua formação universitária ia desembocar num trabalho intelectual proletarizado ou relativamente proletarizado, se sentiam naturalmente aliados da classe operária, o que não era forçosamente o caso do movimento estudantil, onde havia um forte movimento de direita, mesmo durante a guerra da Argélia.

Houve, assim, três fases do movimento de Maio : a primeira fase, de 22 março a 13 maio, em que está em cena sobretudo o movimento estudantil ; a partir de 13 e 17 maio até junho, é a greve geral. O movimento estudantil continuava a desempenhar um papel importante, mais secundário frente à greve geral. Houve quatro dias, em que o centro do processo passou a ser a greve geral, mas, pouco a pouco, ganhou destaque também a crise política, entre 27 e 30 de maio, quando De Gaulle desapareceu, momento em que a crise atingiu o pico máximo. A greve vai durar ainda até 10 ou 20 de junho, conforme as empresas.

No começo do movimento, justamente na fase de 22 de março a 13 de maio, o movimento estudantil cultivava massivamente uma mitologia da classe operária. Se um operário chegava na universidade, pedia a palavra num anfiteatro e dizia : « Sou operário », a aclamação era geral. O encontro entre o movimento estudantil e o movimento operário foi, porém, um tanto quanto decepcionante. Relato aqui uma experiência vivida : a partir do momento que soubemos, em 17 de maio, que a greve começara na Renault-Billencourt – então, a principal usina automobilística da Renault, uma usina mítica, localizada em Billancourt e a 8 km da Sorbonne, a qual foi palco das principais lutas operárias em 1936 e 1947 –, saímos em manifestação da Sorbonne até Renault-Billancourt, numa caminhada bastante longa, com a idéia de nos confraternizarmos com os operários, estudantes e operários juntos. Já imaginávamos o encontro, os abraços. Ao chegarmos, deparamos, porém, com operários no alto dos muros, desconfiados, e de portas fechadas. Não foi, contudo, algo espontâneo. Havia ali um verdadeiro muro de desconfiança, por vezes de hostilidade, instigado sobretudo pelo Partido Comunista e pela CGT, na época a principal força política do movimento operário. O PC alimentou, portanto, um discurso e um sentimento de desconfiança contra os estudantes pequeno-burgueses, sob a alegação do risco de provocação policial, de manipulação, munido, enfim, de toda uma visão policial do complô. De um lado, a direita e a burguesia falavam de um complô internacional, que envolvia os anarquistas, os esquerdistas e até mesmo a União soviética, de acordo com uma espécie de mitologia do complô. O PC, por sua vez, falava também de um complô esquerdista, manipulado pelo poder. Logo, o encontro entre os estudantes e os operários em 68 existiu, de fato, mas na realidade foi bastante limitado e marginal. Operários vieram nas universidades ocupadas, estudantes foram sistematicamente diante das fábricas na tentativa de conversar, mas, na maioria dos casos, o muro não caiu. Esta situação da França é bem diferente da que vai se esboçar nos anos seguintes na Itália ou na Espanha. Na Itália, o encontro do movimento estudantil com o movimento operário na Fiat de Turim, etc., por exemplo, foi muito mais aberto que na França. O Partido Comunista controlava menos e havia correntes católicas importantes. Na Espanha, também, sob a ditadura, a solidariedade entre os estudantes e os operários foi mais imediata. Já na França havia um verdadeiro muro de desconfiança e uma incompreensão forte.

No que se refere ao aniversário de Maio de 68, um balanço pode ser feito hoje : primeiramente, a transformação do movimento estudantil, iniciado em 68, prosseguiu com a massificação da universidade. Os companheiros italianos têm atualmente uma expressão ; eles não falam mais de carreiras, mas de « precários em formação ».

A proletarização do futuro profissional da maioria dos estudantes era, por exemplo, a grande questão e desafio da luta de 2006 contra o « Contrato Primeiro Emprego ». Diferentemente daquela época, as relações entre os estudantes e o movimento operário não se põem mais em termos de solidariedade dos estudantes com os operários, mas muito mais de um combate comum entre os estudantes, « precários em formação », e os operários pelo direito ao trabalho, contra o desemprego, contra a precarização das novas formas de contrato de trabalho, etc. Hoje não se trata, portanto, de solidariedade, e, sim, de um combate comum.

O que começou a se criar em 1968 foi uma cultura democrática de lutas, o que não era nada evidente antes. Hoje, sim. Ninguém imagina uma luta, nem estudantil nem operária, sem uma assembléia geral que vota, decide e controla seus « porta-vozes ». Em 68, começou a ser o caso entre os estudantes. Entre os operários, as lutas democraticamente organizadas nas fábricas foram mais a exceção que a regra. Foi, contudo, ali apenas o início, até porque não houve muitas greves, apenas algumas em 68. A ocupação, sim, tornou-se uma prática corrente, a qual havia começado em 1936. Ocupa-se as universidades, ocupa-se as fábricas. Atualmente, quando há uma luta importante, ocorre ocupação, mas esta é uma experiência que vem lá de trás. Em compensação, houve em 68 novas iniciativas de autogestão, de colocação em funcionamento das fábricas pelos trabalhadores sem os patrões. Começaram, por exemplo, em Brest, que é uma cidade da Bretanha, no Oeste da França. Havia uma fábrica Thompson que produzia na época aparelhos leves de comumicação, os Walkie-Talkies. Os operários fabricaram, então, aparelhos para os grevistas, para se comunicarem durante a greve. Citamos este caso, mas isto foi excepcional. A greve que se tornou símbolo da autogestão na França – a greve da Lipp, uma fábrica de relógio –, aconteceu quatro ou cinco anos depois, em 1973-1974. Trata-se, portanto, de algo que amadurece, mas que leva tempo.

Deste ponto de vista, 68 foi realmente apenas o começo, primeiramente, de uma cultura de luta e de resistência. Acredito que foi a principal coisa que restou. Pode-se dizer que houve ainda conquistas relativas à sexualidade, a outra pedagogia universitária ; conquistas sociais no âmbito dos salários, da quarta semana de férias, dos direitos do comitê de fábrica e dos direitos sindicais. Mas, na minha opinião, o que restou de mais importante foi uma memória coletiva e uma cultura de lutas e de resistência, uma cultura de organização democrática de lutas. Isto explica que as reformas liberais na França, assim como em todos os países da Europa, sejam aplicadas com dificuldades, sofrendo cada vez mais resistência. A França está, portanto, relativamente atrasada no processo de contra-reforma liberal, comparada à Alemanha, Inglaterra ou Itália, etc. Este fato não se deve, porém, a uma mera exceção francesa, mas possui vínculo com as grandes greves de 1995 em defesa do serviço público e da segurança social, com a luta vitoriosa dos estudantes em 2006 e com a rejeição do Tratado Constitucional Liberal europeu em 2005. Tudo isto, mesmo se parece longe no tempo – trinta, trinta-cinco, agora quarenta anos – tem relação com a herança de 68.

EM Pauta : « Não me liberte, eu mesmo me encarrego ! ». Tratava-se de uma convivência plural à esquerda, entre maoístas, trotskistas, anarquistas e independentes ? Há lições a tirar desta experiência política que alguns chamam de « comuna estudantil », talvez de uma reinvenção da política ?

Daniel Bensaïd : A coexistência destas diferentes famílias políticas e correntes de pensamento não foi tão pacifica assim. A relação das organizações maoístas, e mesmo entre certas organizações trotskistas, foi, por vezes, bastante violenta, não somente com o Partido Comunista, mas com todas as pequenas organizações provenientes do PC. Talvez elas reproduzissem elementos da cultura stalinista, que não aceita, na realidade, o pluralismo. Há apenas um partido da classe operária. Os outros são a traição. O stalinismo, deste ponto de vista, fez muitos estragos, porque influenciou, inclusive, a cultura das pessoas que rompiam com o Partido Comunista.

Ao mesmo tempo, é verdade que, em Nanterre, num movimento como o de 22 de março, houve uma certa convivialidade entre estas diferentes correntes. 68 foi apenas o começo de uma cultura pluralista da esquerda, não somente na França, mas levou tempo aqui também para que as pessoas se habituassem que se pode ter pontos de vista, projetos e organizações diferentes, sem que seja a guerra civil, mas dialogando dentro de um respeito mútuo. Na realidade, não chegava a haver muita briga entre as organizações da esquerda radical ou revolucionária. Não aconteceu na França, por exemplo, desastres como ocorreram no Japão, onde as três principais organizações de extrema esquerda se mataram entre si. Houve mais de duzentos mortos no Japão entre os shukaku e os kakumaru, as principais organizações Zengakuren. Na Itália também deram-se relações muito violentas. Na França, em parte graças à JCR (Juventude Comunista Revolucionária) – que mais tarde se tornou a Liga Comunista (LCR) – e aos anarquistas, houve relações bem mais pacificadas. Mas daí à instalação de uma cultura do debate e do pluralismo na esquerda radical, levou muito tempo. De fato, isto só se configurou como uma realidade a partir do momento que o Partido Comunista tornou-se suficientemente enfraquecido para não mais impor seu despotismo à esquerda.

EM Pauta : Maio de 68, como você disse, começou em 1967 com as manifestações mundiais contra a guerra do Vietnã qui se prolongaram no ano seguinte. O líder Martin Luther King, na época travava também seu combate nos Estados Unidos pelos direitos civis, em especial aqueles dos negros. Sua arma era a não-violência. Qual foi o lugar do pacifismo nas reivindicações de 68 ? Que crítica vinha atrás desta bandeira ? Que modelos eram atingidos ?

Daniel Bensaïd : É sempre difícil interpretar o estado de espírito de um movimento de dez milhões de operários, de dois milhões de estudantes secundaristas. No setor militante e ativo do movimento, a cultura não era nada pacifista. Pelo contrário. Havia um grande respeito por Martin Luther King, mas a referência era muito mais Malcolm-X, os Panteras Negras [Partido Revolucionário Americano, Black Panther Party (BPP), fundado em outubro de 1966 para a auto-defesa da população negra contra a brutalidade policial nos guetos dos EUA. Era um dos grupos que, nos anos 60, preconizavam o Black Power], etc. No mais, tínhamos saído da guerra da Argélia, tendo apoiado a luta armada dos Argelinos. Havia um enorme prestígio simbólico da figura de Guevara. Se relermos um dos textos que, na época, estavam entre os mais importantes para nós, O discurso sobre a Africa Intercontinental [Ernesto Che Guevara : Pasajes de la guerra revolucionaria : Congo, Grijalbo Mondadori, México, 1999], se olharmos os cartazes que fizemos para a manifestação de Berlim, são cartazes cubanos. Há sobretudo uma mitologia da luta armada e das armas na esquerda radical e militante, com a idéia de que a violência é liberadora e inocente. A violência foi, inclusive entre os intelectuais, fortemente legitimada por Sartre, notadamente no seu « Prefácio » ao livro de Franz Fanon, Os Condenados da Terra. Franz Fanon, um autor, psiquiatra, negro e militante, das Antilhas francesas, que também tinha ensinado no serviço da revolução argelina, era, na época, um dos porta-vozes da revolta do Terceiro-Mundo de grande prestígio. Seu livro é um apelo à revolta, inclusive, à revolta armada. O « Prefácio » de Sartre no texto de Fanon é uma apologia da violência como violência liberadora.

Hoje isto chocaria muitos pacifistas e militantes dos direitos humanos por razões que compreendo. Hoje vivemos num mundo hiper-violento. Demo-nos conta sobretudo com a crise entre o Camboja e o Vietnã em 1976-1977. A violência pode ter também uma lógica própria que escapa às melhores intenções do mundo, com efeitos totalmente perversos e incontroláveis ; em segundo lugar, há o sentimento de que a violência hoje é tão enormemente assimétrica que não pode haver enfrentamento em igualdade de condições. Os Vietnamitas podiam ainda lutar contra o Império americano com um pedaço de madeira cheio de pregos, do estilo arma artesanal contra o computador, mas quando se vê a guerra do Iraque e as armas de destruição massiva, pergunta-se : ainda é possível ? A violência coloca muitos problemas hoje, mesmo para a esquerda radical, mas, na época, toda a parte militante do movimento aderia muito mais ao modelo Guevara-Ho-Chi-Minh. Ademais, o que se gritava nas manifestações era a liberação pelas armas muito mais que a não-violência. Hoje, o debate é certamente muito mais complicado, face à cultura dos Fóruns Sociais, etc. Eu mesmo tornei-me alguém não-violento, mais preocupado com a lógica dos perigos que pode ter a violência, mesmo uma violência à esquerda com as melhores intenções. Todavia, ao mesmo tempo, vive-se numa sociedade ultra-violenta, e a violência dos oprimidos é, antes de tudo, uma legítima defesa.

EM Pauta : Dizia um outro cartaz : « Não nos atrasemos para o espetáculo da contestação mas passemos à contestação do espetáculo ». Os estudantes na França se manifestavam contra a sociedade de consumo, os costumes e denunciavam, desde o famoso ensaio de Guy Debord, publicado em 1967, a « sociedade do espetáculo ». Os EUA eram assim, novamente, um dos alvos da atitude cultural e política crítica dos estudantes. Neste sentido, Maio de 68 tornou-se um símbolo mundial da denúncia de um mal-estar da civilização ?

Daniel Bensaïd : Sim, seguramente, é um símbolo disto. O que se passa de interessante na França este ano pelo quadragésimo aniversário e que é novo, com relação ao trigésimo e ao vigésimo aniversário é a importância acordada à dimensão internacional de 68. Houve a greve geral na França, mas insiste-se muito mais hoje, do que há dez ou vinte anos atrás, sobre o Vietnã, a Tchecoslováquia, o México. Tornou-se, portanto, um evento mundial e global. Talvez depois que o mundo se globalizou, tomamos consciência de que haviam elementos que se reproduziram em escala mundial. Adquiriu-se a coincidência que em 68 passa-se o assassinato de Martin Luther King, um ano antes o assassinato de Guevara, a batalha no Vietnã, a Primavera de Praga. Enfim, alguma coisa foi possível ou pareceu ser possível durante aquele momento que era mundial.

Foi também efetivamente uma resposta a um profundo mal-estar na civilização, que é o resultado da crescimento e da revolução tecnológica após a Segunda Guerra Mundial, que se traduz ainda pelo que já evoquei : a transformação da universidade, a mudança da organização do trabalho, a massificação do proletariado, a generalização do Estado de Bem-Estar – o Estado Social Keynesiano –, logo do consumo, posto que um dos princípios deste último é a distribução de salários, donde a mudança do tipo de consumo, a aparição do eletrodoméstico nos lares, a generalização do automóvel, o começo da televisão, etc. Tudo o que Kristin Ross – que é americana – descreve muito bem, à propósito da França, no livro, traduzido em francês, Lave mais rápido, Lave mais branco, um slogan publicitário da época. Os personagens do romance de Perec, sobre o qual falei ainda há pouco, estão em pleno início do marketing. Tudo isto pode ser encontrado também nos filmes de Godard e, antes de Debord, no livro de Marcuse de 1964, O Homem Unidimensional. É uma tomada de consciência geral.

É preciso dizer que se costuma interpretar muitas vezes a categoria sociedade do espetáculo de Débord, de maneira frágil, como apenas uma crítica da sociedade da imagem, mas Débord não se resume a isto. A imagem faz parte, sem dúvida, do processo, mas trata-se sobretudo do estado supremo do fetichismo da mercadoria. O próprio Débord disse que fez uma escolha por uma técnica de escrita de citações escondidas, embutidas, que não são evidentemente plágio ou montagem de textos, mas sendo sua análise integrada por passagens inteiras de Marx. O espetáculo é, efetivamente, constituído pelo mundo das mercadorias.

Ademais, a crítica da sociedade de consumo foi um dos elementos da pauta do movimento estudantil em Nanterre. Foram distribuídos panfletos, em 1967, que criticavam notadamente o papel dos sociólogos ou o papel dos psicólogos no trabalho de marketing. Por trás da crítica da sociedade de consumo, começou, portanto, a emergir o que se tornou uma crítica da ecologia : a ecologia crítica (os malefícios do produtivismo, as modificações da cidade, etc.). Tudo isso é muito importante. Marcuse e, talvez, Débord sejam mais conhecidos hoje mundialmente. Débord foi diretamente inspirado por Henri Lefebvre, que foi meu professor, aliás, em Nanterre. Lefebvre publicou A Crítica da Vida Cotidiana em 1961. Foi, de fato, toda uma tomada de consciência da alienação do trabalho, por isto todos vão se reencontrar na greve. A greve de 68 possui todas as reivindicações habituais de aumento de salários, mas é a primeira vez – em comparação com grandes greves de 1936 ou 45, já citadas no caso da França, e que até então eram a referência – que a crítica à alienação do trabalho, às condições de trabalho, do trabalho ele mesmo, adquire importância, como resposta ao Taylorismo, ao trabalho em cadeia, etc. Estava-se numa nova etapa do capitalismo, logo atingia-se uma nova consciência dos seus estragos e, portanto, do mal-estar da civilização, que é uma das suas consequências.

EM Pauta : « Beije seu amor sem largar o fuzil ! ». Como a sua geração via, naquele momento, o papel da América Latina com relação à « realidade do desejo » da revolução ? As ditaduras ali prevaleciam.

Daniel Bensaïd : A América Latina era, para nós, uma referência forte. Existia, na França, uma grande simpatia, primeiramente, pela revolução cubana. Todas as iniciativas, na época, em torno da Tricontinental, da OLAS [Organização Latino-Americana de Solidariedade, criada em janeiro de 1966, na Conferência Tricontinental, em Havana], as exposições de pinturas, entre outras, fizeram com que os intelectuais de esquerda que tinham adquirido prestígio notadamente na denúncia da guerra da Argélia – o mais significativo é Sartre, mas também André Breton, da corrente surrealista, o qual morreu em 1965 ; no cinema, Armand Gatis et Chris Marquer, cineastas militantes de 68 – tivessem uma relação de simpatia e de apoio muito forte para com a Revolução Cubana e a Liga de Libertação de Cuba. Em segundo lugar, Cuba aparecia, principalmente, através dos textos de Guevara, « O Socialismo e o Homem » e « O Discurso de Argel », como uma crítica do socialismo burocrático do Leste e as ilusões sobre o exemplo. Tentávamos escapar ao controle e sobretudo ao conflito sino-soviético, à rivalidade e à polêmica entre a União Soviética e a China. O que, ademais, é dito na carta de Che, a Tricontinental [« Mensagem aos Povos do Mundo Através da Tricontinental », 1967], notadamente quanto ao Vietnã, onde se desenrolava uma espécie de guerra fratricida, em que vietnamitas e o povo da Indochina pagavam as consequências. Procurávamos, então, em torno de Cuba uma terceira via. Os cubanos tomaram iniciativas de encontro aos coreanos e vietnamitas, publicando, na época, textos no Gramma – jornal que líamos regularmente. Parecia, assim, começar ali uma terceira via, nem pró-chinesa nem pró-soviética até a Zafra de 67 e a morte do Che, que marcará uma mudança. Tudo isto tinha criado uma relação particular da França e mais amplamente da Europa com a América Latina. Pela identificação com Cuba, o nacionalismo basco, de tradição histórica, por exemplo, tornou-se socialista e se aliou ao movimento operário na luta contra a ditadura na Espanha.

Era esse o estado de espírito em 67, antecipando cronologicamente o que um ano mais tarde se consagrará como Maio de 68. Projetávamos nos « cineclubes » filmes como « Açúcar Amargo » [“Sucre Amer”, do cineasta Yann Le Masson (France, 1963)] ou “Cuba si !”de Chris Marquer ; e de Armand Gatti, um filme sobre Cuba que quase não se acha mais, « El Otro Cristobal », de 1962. Era, enfim, uma referência muito forte na esquerda radical e mais amplamente entre os intelectuais de esquerda na França.

A Conferência da OLAS, em 1967, foi um pouco o auge deste movimento de simpatia. Nosso primeiro grande encontro público, depois de termos sido expulsos do PC, contou justamente com a presença de pessoas que vinham da Conferência da OLAS, que falavam de Cuba, do que se passou, de solidariedade, dos povos do Terceiro-Mundo, etc. Na França, houve o rapto de Ben Barka em 1965, no momento que ele estava justamente preparando a Conferência da OLAS. Logo após, na França, a partir de 68, começamos a nos vincular à corrente trotskista internacional. Não foi, portanto, somente uma referência e solidariedade à América Latina. Tivemos relações muito estreitas com os argentinos e bolivianos. Com estes, a questão era como continuar o projeto do Che na Bolívia, depois de sua morte. Havia um laço mais que forte, primeiro, com a Argentina e o PRT (Partido Revolucionário dos Trabalhadores) – em particular, com Moreno –, visto que nos encontrávamos na mesma corrente internacional, e depois com camaradas latino-americanos que estavam exilados em Paris. Havia notadamente um pequeno grupo de exilados brasileiros – Emir Sader, Flavio Koutzi e Paulo Paranaguá –, os quais, mais tarde, partiram para a Argentina. Não se tratava, portanto, de algo exótico, mas de laços muito fortes com o MIR chileno [Movimiento de Izquierda Revolucionaria], por exemplo, que possuía uma história um pouco comparável à nossa, isto é, de referência guevarista, um pouco trotskista, influenciado intelectualmente por Luis Vitale. Sentimo-nos, portanto, imediatamente solidários.

Enviávamos, por vezes, militantes e garantíamos um apoio, pelo menos logístico, nas lutas contra a ditadura na Argentina e na Bolívia. No Brasil, a primeira experiência foi desastrosa : o primeiro militante que havia sido formado aqui, na Liga, Luís Eduardo Merlino, foi preso e assassinado no dia do seu retorno, quando a idéia era que os militantes retornariam na clandestinidade. Os outros, ao invés de voltarem diretamente para o Brasil, partiram para a Argentina, a fim de se formar antes de retornar para lá. Mas depois a história foi um pouco diferente.

EM Pauta : No seu livro com Alain Krivine, 1968, fins e continuidades [Nouvelles éditions Lignes, 2008], vocês disseram que, para alguns, depois da queda do Muro de Berlim e do fim da União Soviética, Maio de 68 parece ter ficado do outro lado da cortina da História. No entanto, trata-se muito mais do contrário : Maio de 68 ajudou a fundar uma práxis política mais democrática, espontânea e autêntica, tal como a Primavera de Praga. Onde pode-se dizer que resistem e subsistem, entre as cinzas de Maio de 68, as brasas do sonho da « imaginação no poder » ?

Daniel Bensaïd : Há uma forte discontinuidade. Alguns falam, nas discussões e reuniões, que Maio de 68 fracassou. Penso que isto não quer dizer nada, contrariamente a Cohn-Bendit que diz : « É preciso esquecer 1968. 1968 acabou, porque culturalmente nós ganhamos ». Ele pode acreditar que mudamos a vida, sem mudar o mundo, mas não mudamos nem o mundo nem a vida. Alguns mudaram suas vidas, porém, para a grande maioria da população, a vida é mais dura hoje aqui relativamente do que era em 68. Não havia três milhões de desempregados, sete milhões de trabalhadores pobres e um número de pessoas que comem no Restaurante do Coração [ Restos du Coeur é uma associação humanitária fundada em 1985, que se notabilizou pelo fornecimento de refeições grátis a trabalhadores pauperizados, desempregados, sans papiers, entre outros], cada vez maior a cada inverno. Se a situação é esta, 68 não foi um fracasso, 68 foi vencido. Foi uma derrota. Talvez seja uma vitória cultural. Há coisas, já falamos sobre elas, positivas, mas socialmente não se trata apenas de uma derrota de 1968 na França, mas de uma derrota das esperanças de emancipação do século XX. Quando digo uma derrota, não é simplemente um problema simbólico, moral e cultural. Refiro-me à situação hoje do mercado mundial do trabalho, à entrada de centenas de milhões de trabalhadores chineses, indianos e russos no mercado de trabalho, sem proteção social ou praticamente sem direitos do trabalho. É evidemente um espaço de concorrência que puxa todos os direitos sociais para baixo. Isto vai continuar ainda durante anos até que se reorganize um movimento sindical na China. Isto acontecerá, estou convencido, no entanto é preciso tempo. Para mim, é muito importante dizer : « Sofremos uma derrota, insisto, social ». A queda do Muro de Berlim é apenas o último episódio. Na realidade, o que tinha sido a Revolução Russa começou a apodrecer nos anos 30, estava completamente putrefato. Assim, a queda do muro de Berlim foi apenas o epílogo de tudo isto, mas o epílogo também tem um sentido. Foi toda uma época que se encerrou por dentro desta derrota. Quando Sarkozy diz : « Finalmente, tudo o que vai mal na sociedade deve-se a Maio de 68… » e mesmo Régis Debray, num livro que ele reeditou, publicado originalmente em 1978, cujo título é : 68, Uma contra-revolução bem-sucedida. Régis Debray joga sempre com o paradoxo, por isso a provocação do título. Todavia, para além da provocação, há um verdadeiro desacordo. Ele considera que o mercado hoje – o egoísmo, a concorrência, uma sociedade fraturada, cada um por si – é a sequência lógica de 1968. Não concordo de jeito nenhum. Penso que, em 68, havia a aspiração à liberdade individual, mas sem oposição entre o individual e o coletivo, pois Os dois funcionam juntos. O desenvolvimento do individualismo egoísta, liberal e concorrencial não é o espírito de 68, é consequência da derrota de 68, do fato que não fomos até o fim. Isto é verdade na França e sob uma outra forma, é verdade mais amplamente.

À questão do que persiste ainda hoje do germe da imaginação no poder, é possível responder que recomeçamos de baixo. Partimos de uma derrota. A erva começa a renascer, mas renasce rente ao solo e, portanto, leva tempo para crescer novamente. No início dos anos 90, pessoalmente, temia que a derrota durasse mais tempo. Achava que ia ser muito longo o caminho da reconstrução. Com a insurreição Zapatista de 1994, com as greves de 1995 na França e com a aparição do movimento altermundialista após as manifestações de Seattle, não digo que a correlação de forças se restabeleceu, mas entrou-se num período que chamo de « fermentação utópica », no seio do qual a imaginação recomeça a trabalhar. Não se sabe ainda precisamente bem o quê. É significativo, por exemplo, o lugar que ocupa o termo « outro » : outra campanha para os Zapatistas, outro mundo, uma outra Europa, outra coisa, enfim.

O que, por sua vez, evoluiu muito rápido foi o canto de vitória do capitalismo liberal, já no “dia seguinte” em 1989. George Bush pai prometeu, naquela ocasião de encerramento da Guerra Fria, um planeta próspero e pacificado, mas se passou justamente o contrário. É a guerra permanente. É a catástrofe ecológica e climática. Diante isto, o discurso liberal e capitalista perdeu muito rapidamente sua legitimidade : “Isto não funciona, isto não está melhor, mas sim pior”. Há, de um lado, uma perda de legitimidade do sistema, porém, do outro, não há ainda uma alternativa.

As tentativas de socialismo do século XX fracassaram. Terminaram em burocracia, ineficiência, etc. Então, é preciso inventar algo novo, mas, para tanto, não se pode perder a memória do que foi tentado, do que funcionou ou não, do que deu certo ou não nas experiências socialistas do século XX. A discussão está aberta sobre um socialismo ou um comunismo do século XXI. Não se tem, por enquanto, a resposta, contudo pode-se, pelo menos, começar a rediscutir. Penso, por exemplo, que é muito importante apoiar o que se passa na Bolívia e na Venezuela, sem ter ilusão sobre os indivíduos. O processo da Venezuela começou pelo alto, com o Chávez, numa sociedade pouco organizada no plano social e sindical. Já se sabe, porém, que isto favorece um processo de burocratização e de corrupção muito rápido, mas, ao mesmo tempo, existem ali tentativas de se reapropriar da soberania energética, via sistema de armazenamento de hidrocarburetos, e de se libertar um pouco da dominação do dólar, via Banco do Sul.

É preciso acompanhar as experiências. Ao que tudo indica, estamos no início de um novo ciclo de experiências. Antes da Comuna de Paris, ninguém sabia que haveria a Comuna de Paris, não havia sequer a idéia de como se organiza uma democracia comunal. Antes dos sovietes, ninguém fazia idéia do que seriam os sovietes. Agora, existe a Internet, a crise ecológica e tem-se novas experiências. Em contrapartida, discordo de discursos do tipo « nova utopia », à maneira de Holloway, ou seja, daqueles que propõem « mudar o mundo sem tomar o poder ». Pode ser esta uma formulação simpática, porque o poder é perigoso, mas concretamente não diz nada sobre o que fazer na Bolívia para resistir à tentativa ou não dos povos autônomos explodirem a experiência boliviana, que é uma maneira de contra-insurreição de baixa intensidade na realidade. Ou ainda : como responder às tentativas de golpes de Estado na Venezuela ? Qual reforma agrária e como utilizar, inclusive, os serviços do Estado para tal reforma ? Tudo isto são questões e desafios, por isso acredito que é preciso entrar na esfera dos problemas concretos.

Quanto à imaginação, não se pode impedir os seres humanos de sonhar. A imaginação trabalha, queiramos ou não. Ela começa agora a produzir um debate político. Diria que, durante os anos 90, antes e depois da queda do Muro, o único discurso que tinha se oposto à ofensiva e à a contra-reforma liberal era o da resistência. Basta ler. Eu mesmo publiquei, pelo menos, três livros em que havia a palavra “resistência” no título. Não se sabia se “outra coisa” seria possível, mas, por princípio, era necessário resistir. Não havia, porém, mais discussões sobre qual socialismo, como chegar lá, quais estratégias, etc. Este debate recomeça um pouco agora, ao discutir o “balanço Lula”, o “balanço Chávez” e a Bolívia. Na América Latina, já é certo, mas na Europa, começa-se também a discutir “esta Europa não funciona”, os porquês da catástrofe eleitoral na Itália, o que é que se pode fazer de diferente, ou seja : de “outra maneira”.

EM Pauta : « Quanto mais faço amor, mais tenho vontade de fazer a revolução. Quanto mais faço a revolução, mais tenho vontade de fazer amor ». Como é o mundo quarenta anos pós Maio de 68 ? Quais exigências políticas e culturais “soixante-huitardes” foram incorporadas ? Quais jamais foram levadas em conta ?

Daniel Bensaïd : Houve, na época, uma grande ilusão, ou melhor, uma espécie de simpatia que ligava o amor à revolução. Era uma maneira de defender e de recolocar na ordem do dia um humanismo revolucionário (sobre o humanismo, pode-se querer dizer um monte de coisas diferentes, recorremos a ele aqui então sem entrar em detalhes, mas guardando o bom senso do termo) e de se opor à imagem de um socialismo triste, autoritário, despótico : toda a imagem transmitida pelo stalinismo. Logo, era compreensível e normal acentuar a realização e a libertação individuais, e opor a subjetividade dos desejos individuais à gestão ou à administração anônima das necessidades e à planificação soviética. Por isso, o termo do desejo, ligado ao do amor, foi tão importante.

Após 68, vamos reencontrá-lo notadamente na França, com Lyotard, Deleuze e Foucault. Isto aparecia como um discurso subversivo contra todas as formas de autoridade e de limites. Ora este termo do desejo foi perfeitamente recuperado pela publicidade do mercado. Toda a comunicação sobre o automóvel e sobre o corpo hoje é uma reciclagem. No entanto, este discurso sobre o desejo – se desconectado das necessidades sociais, e se a realização individual é dissociada da solidariedade e da organização coletiva – é perfeitamente utilizável dentro do novo espírito do capitalismo liberal, mas traduzido diferentemente, como : individualização dos salários, individualização do tempo de trabalho e individualização dos seguros. Assim, de fato, a destruição de todas as formas de solidariedade coletiva entrega a seguridade social de bandeja para os seguros privados. Há, portanto, uma recuperação espetacular desse discurso pelo sistema. A partir do momento que sofremos uma derrota, é normal, pois não há nenhum tema que não seja recuperável.

Desse modo, temas que podiam ser subversivos em 1968 ou após Deleuze, tornaram-se hoje, uma vez submetidos a forças regressivas, facilmente recuperáveis pelo discurso liberal. É onde estamos no momento.

Na minha opinião, é preciso retomar uma reflexão sobre a relação entre a realização individual e as necessidades coletivas, reativar esferas de solidariedade, reconstruir o espaço público, enquanto formas de apropriação social. Significa, por exemplo, reconstituir o que é um problema maior hoje. Quando lemos o livro de Mike Davis sobre O pior dos mundos possíveis (Planet of Slums), sobre um planeta onde não há mais cidades, mas apenas zonas urbanas ou cidades sem política – como diz também um outro livro de M. Davis sobre Dubaï –, não pode mais haver cidadãos e democracia. Então reconstruir o espaço público tornou-se um problema fundamental, inclusive para as cidades que não sejam simples alojamentos, cidades-dormitórios. A imaginação é também uma maneira de habitar o espaço.

EM Pauta : Quais são as semelhanças e diferenças entre a juventude do século XXI e a da geração 68 ?

Daniel Bensaïd : Como semelhança, eles são jovens, agora as diferenças são múltiplas. Contudo, a principal diferença é que hoje a maioria deles pensa que viverá em piores condições e mais dificilmente que a geração presente e a geração passada. Pertencemos a uma geração feliz, apesar das guerras coloniais e da miséria do mundo. Estávamos convencidos que as gerações futuras viveriam melhor. A diferença é, portanto, muito concreta. Em 1968, a preocupação com o futuro não estava no script. Todo mundo na universidade tinha certeza que encontraria trabalho, mesmo sem prosseguir com os estudos. Conseguia-se sempre dar um jeito. Hoje tem-se um cenário de três milhões de desempregados e precários, o que constitui a diferença maior entre o movimento de 68 e o de 2006, de luta contra o Contrato Primeiro Emprego. Alguns dizem, então, que, naquela época, os jovens eram mais líricos e poéticos, ao passo que hoje são menos líricos e mais prosaicos. Sim, porque a situação agora é infinitamente mais difícil em termos de futuro para esses jovens.

Ao mesmo tempo, uma coisa que se constata, quando se olha imagens de 68, é que a sociedade francesa ali era branca e homogênea. Hoje a população mudou muito e isto, sem dúvida, é importante. Para uma sociedade que possui uma tradição bastante racista, por causa, em particular, da herança colonial, as atuais lutas da juventude, em que pessoas de origens diferentes lutam juntas, criam uma cultura anti-racista. É apenas o começo. Estamos longe do que seria necessário, mas já é algo de concreto.

Há todas essas diferenças. No mais, cabe a eles dizer.

EM Pauta : O que se pode saudar e lamentar entre os que fizeram Maio de 68 ?

Daniel Bensaïd : Eu não tenho nada a lamentar. Não sei se haveria algo a lamentar. Tentamos mudar o mundo. Não conseguimos. Isto não quer dizer que não deveríamos ter tentado. É uma geração decapitada, não somente na França.

Se olharmos quem eram as figuras, na época, que poderiam simbolizar a esperança de libertação : Ben Barka, Franz Fanon, Abane Ramdane, Larbi ben Mhidi na Argélia, Amílcar Cabral, Guevara, Miguel Enriquez, Yon Sosa. Poderíamos estender ainda a lista : Martin Luther King, Malcolm-X. Era outra coisa, política e moralmente falando, do que Oussama Ben Laden e mollah Omar. É uma geração decapitada, porque foi simplemente assassinada. Fanon morreu de doença, mas a maior parte de todas essas pessoas foi assassinada. É uma geração vencida.

Há que se lamentar ter tentado, depois do fogo apagado ? Na ocasião do aniversário do assassinato do Che, em outubro passado, a imprensa – aqui o Le Monde, El País, na Espanha – disse que “ele era um louco, um suicida”. Há sempre um aspecto psicológico pessoal, assim como também certamente erros políticos. Ele mesmo dizia : “Muitos morrerão vítima dos seus erros”. Ele foi o primeiro, talvez. Mas por trás dos seus erros, havia uma lógica política. Houve um momento em que algo era possível, no entanto quando se deixa passar a ocasião desta possibilidade, o que foi o caso, depois paga-se as consequências, mas lamentar, não. É evidente que se nos fosse proposto fazer tudo novamente, há certos erros que penso que, com a experiência, evitaríamos, mas não é porque os cometemos que não faríamos tudo outra vez. Não nos enganamos de inimigos, não nos enganamos de combate. Então, o que poderia haver a lamentar ? De não ter feito uma carreira política ? Quando vejo o nível dos políticos, não há nada realmente a lamentar. De não ter ganho mais dinheiro ?

Pessoalmente, eu diria que houve períodos dolorosos. Para mim, a experiência mais dolorosa foi a da Argentina. Estive lá em 1973. Metade dos militantes que conheci foi assassinada nos dez anos seguintes. Isto figura entre as minhas lembranças mais dolorosas. Na Europa, na França, em particular, não é possível, depois de quarenta anos ou mais de engajamento militante – e não falo somente por mim, mas também por pessoas como Krivine ou outros com quem partilhei toda esta história – reduzir toda essa experiência a uma espécie de sacrifício cristão. Fizemos sacrifícios, na vida pessoal talvez, mas, no final das contas, largamente compensados por grandes alegrias e encontros, com pessoas anônimas e desconhecidas, inclusive, aqueles que Besancennot [carteiro, militante da esquerda radical e um dos porta-vozes da LCR, foi candidato, em 2007, a Presidente da França] chama hoje de « heróis do cotidiano », que são dez vezes mais interessantes do que muitos outros. Como experiência humana foi e é muito enriquecedor. Acredito que, se fosse necessário voltar a fazer o que fizemos, faríamos mais ou menos a mesma coisa, tentando evitar alguns erros talvez, mas seria mais ou menos a mesma coisa. Então, não há nenhum nenhum arrependimento a esse respeito. Quando vejo o que se tornaram Cohen-Bendit, Henri Weber, etc., prefiro estar no meu lugar e não no deles. Não é querer ser pretensioso. Apenas não me arrependo de nada.

EM Pauta : O que mudou na sua visão do mundo, princípios e atitudes frente à sociedade capitalista atual ? E possivel ainda sonhar com o socialismo ?

Daniel Bensaïd : Penso que o capitalismo está ainda mais catastrófico hoje do que ele era na época. Saíamos de um período de crescimento, mas não tínhamos ainda as inquietudes pela ecologia : o clima, a alimentação do planeta, a água potável, o que fazer dos dejetos nucleares, etc. Os estragos do capitalismo, sociais e ecológicos, são muito mais graves hoje. Então é ainda mais necessário que naquela época e sobretudo mais urgente tentar mudar o mundo. Se não conseguirmos, não conseguimos. Penso, porém, que será uma catástrofe para a humanidade, mas, pelo menos, teremos a conscência de ter tentado. Aqueles que não tiverem tentado, se eles ainda estiverem lá, terão vergonha por não terem nem mesmo tentado.

O socialismo é algo a ser inventado. Não há um modelo. Não sei como pode vir a ser na época da Internet, dos tele-satélites, das novas tecnologias. Todavia, o que se sabe é que há duas lógicas : uma lógica da concorrência de todos contra todos, apoiada sobre a propriedade privada e sobre a privatização do mundo, cuja consequência é a guerra permanente de todos contra todos. Não se trata de uma fórmula, mas do discurso de George Bush em 20 de setembro de 2001, uma semana após os atentados de 11 setembro ; ou então uma lógica dos serviços públicos, de solidariedade, dos bens comuns da humanidade, a começar pelos bens fundamentais : a terra, a água, o ar, o conhecimento, o saber, a vida, todos hoje ameaçados de privatização. A terra : já é há muito tempo. O ar : com o mercado dos direitos de poluição está em vias de sê-lo. A água privatizou-se largamente. O saber e o conhecimento são objeto de discussões na Organização Mundial do Comércio, com a multiplicação das patentes sobre os softwares. A vida : é a privatização por patentes de decifração do gene. Logo, trata-se simplesmente de um mundo infernal. Face a isso, há uma lógica de solidariedade, uma verdadeira batalha. Ela ainda está mal encaminhada, porque partimos de uma derrota, mas é preciso, pelo menos, levá-la à frente para saber se teremos chance de êxito. Todos os discursos da resignação e do “mal menor” conduzem ao pior, porque assim não há uma verdadeira oposição. Quando a esquerda esteve, por exemplo, no governo, na Itália, e fez a política da direita, foi a direita que ganhou, igualmente na França com Sarkozy.

EM Pauta : É um bom sinal que o papa Bento XVI e o presidente francês Sarkozy tentaram recentemente conjurar a memória e as contribuições históricas, culturais e sociais de Maio de 68 ? O espectro desta geração ainda apavora a direita no presente ?

Daniel Bensaïd : Sim, eu acredito. O último discurso de campanha eleitoral de Sarkozy contribuiu para despertar a curiosidade sobre 68, afinal por que quarenta anos depois, a uma semana da eleição, o candidato que vai ganhar, subitamente, decide agitar o espantalho de 68, conclamar a liquidá-lo ? Isto poderia ser interpretado como um discurso de força de uma direita que se descomplexou, como se dizia na época. Na realidade, estou de acordo com Alaini Badiou, é um discurso de medo. É uma tentativa de mobilizar o partido do medo e o partido da ordem, porque o movimento social pode recomeçar e recomeçar de forma muito mais séria e mais grave. No fundo, o problema é que costumamos ter a impressão que essas pessoas são muito fortes – Berlusconni, Sarkozy, etc, porque muitas vezes examinamos apenas os resultados eleitorais em que eles foram vitoriosos com 55 ou 60 % dos votos. Basta, no entanto, alguns meses para ver que a burguesia e as classes dominantes também não conseguiram resolver seus problemas de legitimidade e permanece tudo muito frágil.

Há uma crise da esquerda, mas há também uma crise da direita. Estas duas crises alimentam-se uma na outra. Trata-se de um círculo vicioso, que pode resultar em catástrofes. Podem surgir correntes neofascistas. O perigo é esperar que estas correntes assemelhem-se ao fascismo dos anos 30. Tem-se em mente, portanto, Mussolini, Hitler, etc., quando o perigo, de fato, está em suas novas formas : um verdadeiro neofascismo. Se pensamos unicamente com base na imagem do que foi o fascismo europeu ou em certos países da América Latina nos anos 30, corremos o risco de não ver a irrupção dessas formas novas. O racismo hoje na Itália, por exemplo, vai muito além do discurso xenófobo de Le Pen, através da Liga do Norte, de formas novas de nacionalismo, como o nacionalismo regional, etc.

Em todo caso, pode-se afirmar seguramente que o discurso de Sarkozy, que fez de 68 uma espécie de pecado original, é um discurso de medo, inconsciente, mas, antes de tudo, um discurso de medo.

EM Pauta : Você teria algo a acrescentar que inspire ainda mais a pensar sobre tudo o que falamos ?

Daniel Bensaïd : O sonho não se fabrica. É preciso vivê-lo. Então, é necessário que ele surja. Se há alguma coisa que não se pode programar são os sonhos. É preciso que uma época consiga sonhar para diante. Não é simples. A utopia é o sonho rumo adiante. Não é refazer o passado ou reviver o passado sem parar. Os revolucionários russos tentaram reviver a revolução francesa, depois fomos nós que tentamos reviver a revolução russa ou a comuna de Paris. Assim, cabe tentar não fazer o sonho do passado, mas sonhar o futuro. Talvez a idéia do sonho não seja a boa imagem, pois o importante é o que se inventa na luta coletiva. Este heroísmo do cotidiano, na minha opinião, possui muito mais poesia que grandes volteios líricos, ou seja, conhecer esta capacidade que tem o povo de ser paciente na longa duração e de resistir no cotidiano. Cada vez que vejo, por exemplo, o movimento de desempregados no Norte da França, que faz uma coleta pelos trabalhadores “sans papiers” que são expulsos, penso que aí inventa-se algo, que não é espetacular, mas certamente bem mais importante em termos da idéia que se faz da humanidade do que muitos espetáculos e grandes festas artificiais.

Entrevista e Tradução : Mione Apolinario Sales
Paris, 2 juin 2008

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