“Nada corrompeu mais o movimento operário alemão do que a convicção de nadar a favor da corrente. Considerou o desenvolvimento técnico como o sentido da corrente. A partir daí, só precisou dar um passo para imaginar que o trabalho industrial representava uma conquista política. Às custas dos operários alemães, a velha ética protestante do trabalho celebrou, de uma forma secularizada, sua ressurreição. (…) Esta concepção de trabalho não se preocupa em saber em que medida os produtos deste trabalho servem aos próprios produtores, que não podem dispor deles. Só se preocupa com o progresso no domínio sobre a natureza, não com as regressões da sociedade”. Walter Benjamim, Teses sobre o conceito de história (1940).
Walter Benjamim foi dos poucos que trataram, nas vésperas do desastre, dos desgastes ideológicos e políticos sofridos pelo movimento operário em função do produtivismo e do culto ao trabalho. Mas, já desde 1883, em sua célebre brochura escrita em Sainte-Pelagie, O direito à preguiça, Lafargue se indignava com o grosseiro despropósito de que era objeto o pensamento de Marx. Denunciava “a paixão moribunda pelo trabalho levada até o esgotamento das forças vitais do indivíduo”. O culto ao trabalho constituía “uma estranha loucura”, uma “religião da abstinência” que gerava “corpos debilitados”, “espíritos encolhidos”, seres mutilados.
Em conseqüência, Lafargue chamava à superação “da dupla loucura dos trabalhadores, de se matar no trabalho e vegetar na abstinência”, à “esmagar a extravagante paixão dos trabalhadores pelo trabalho”: “é necessário que o proletariado pisoteie os preconceitos da moral cristã, econômica, livre-pensadora, é necessário que retorne a seus instintos naturais, que proclame os direitos à preguiça, mil vezes mais nobres e mais sagrados que os tísicos ‘Direitos do Homem’, incitados pelos advogados metafísicos da revolução burguesa; que se obrigue a não trabalhar mais do que três horas por dia, a perambular e farrear o resto do dia e da noite”.
Não é de se estranhar que a velha brochura de Lafargue ganhe mais popularidade hoje em dia e tenha se tornado um sucesso editorial. Mas este redescobrimento do direito à preguiça está baseado em um mal entendido. Pode expressar um protesto legítimo contra a privação do emprego de uns e o excesso de trabalho de outros – o trabalhador overworked (sobrecarregado) –; mas, também, pode significar uma teorização da renúncia a lutar contra a fatalidade do desemprego, que nos domina.
De Jeremy Rifkin (O fim dos empregos. São Paulo: Makron, 1996) a Viviane Forrester (O horror econômico. São Paulo: Edunesp, 1997), o tema do final ou do desaparecimento do trabalho é uma cantilena que se repete. Mesmo André Gorz se aventura em prognósticos definitivos: “Não há, nem haverá nunca suficiente trabalho” 1. Este abrupto veredito é muito confuso.
Crise ou final do trabalho?
De que se está falando exatamente? Do trabalho em geral, no sentido amplo, antropológico do termo? Ou do trabalho específico, historicamente determinado por um modo de produção, o trabalho assalariado?
No sentido antropológico, falar do desaparecimento ou do fim do trabalho não quer dizer, na verdade, nada. Para Marx, o trabalho, em um sentido amplo, é “qualquer atividade humana que possibilite expressar a individualidade daquele que a exerce” ou, ainda, “qualquer dispêndio de força humana” (cérebro, nervos, músculos, sentidos, órgãos), “abstraindo-se seu caráter útil”. Para Dominique Méda, “o trabalho é aquela atividade essencial do homem, através da qual se põe em contato com sua exterioridade e com os outros, com os quais e para os quais realiza esta tarefa” 2.
Em sua generalidade antropológica, o trabalho aparece portanto:
– Como a operação que faz de um produto natural um objeto social; não só como a mediação entre a humanidade e a natureza, mas também como uma das mediações através das quais se opera a socialização dos seres humanos.
– Como um conversor de energia que possibilita transformar as energias naturais em energias socializadas, possibilitando, assim, a auto-reprodução do indivíduo e da espécie por meio do desenvolvimento e da diferenciação das necessidades.
Na medida em que esse desenvolvimento não tem um limite a priori e que as próprias necessidades humanas são determinadas historicamente, o trabalho dedicado a satisfazê-las não pode se limitar a uma quantidade e a uma forma histórica dadas: “Para os mortais, escreve Hannah Arendt, a vida fácil dos deuses seria uma vida sem vida” 3.
“Suponhamos que produzimos seres humanos: cada um de nós se afirmaria duplamente em sua produção, em relação a si próprio e ao outro.
1. Em minha produção, eu realizaria minha individualidade, minha particularidade. Trabalhando, experimento a alegria de manifestar a individualidade de minha vida e, contemplando o objeto produzido, alegro-me ao reconhecer minha própria pessoa como um potencial que se realizou, como algo visível, tangível, objetivo.
2. O uso que você faça do que produzi e o prazer que obtenha, dar-me-ia a alegria espiritual de satisfazer, através do meu trabalho, uma necessidade humana, de contribuir para a realização da natureza humana e de aportar ao outro o que lhe é necessário.
3. Eu teria consciência de atuar como mediador entre você e o gênero humano, de ser experimentado e reconhecido por você como um complemento de seu próprio ser e como uma parte indispensável de você mesmo, de ser acolhido em seu espírito e em seu amor.
4. Teria a alegria de que o que minha vida produz sirva para a realização da sua vida, de cumprir na minha atividade particular a universalidade de minha natureza, de minha sociabilidade humana. Nossas produções seriam como espelhos em que nossos seres se irradiam um ao outro 4.
Esse magnífico texto resume a acepção antropológica, na qual o trabalho se confunde com as manifestações amorosas na relação com o próximo, onde os seres “irradiam-se de um ao outro”, onde se acolhem reciprocamente em seu espírito e em seu amor. Mas isso só se trata de uma suposição: “Suponhamos que produzimos como seres humanos…” Entretanto, precisamente, não produzimos como seres humanos. E toda a crítica posterior da economia política se anuncia como uma crítica da inumanidade real do capital5.
Suponhamos, pois… Sonhemos…
A “base miserável” do tempo de trabalho abstrato
Mas despertemos. Porque o trabalho de que se trata na sociedade realmente existente não é esse trabalho amoroso, mas um trabalho obrigatório, alienado; o trabalho abstrato corresponde, segundo o vocabulário taylorista, à “fiel jornada de trabalho” do “homem médio”. O modo de existência quantitativo do trabalho é o tempo de trabalho uniforme e indiferenciado, “simples, por assim dizer, despido de toda qualidade”, diz Marx.
“Como valor de troca, o produto do trabalho mais complexo é uma proporção determinada do produto do trabalho médio simples; trata-se de uma equação com um quantum determinado desse trabalho simples”6.
Esta noção de trabalho abstrato “foi elaborada paralelamente ao de tempo abstrato, que a física e a astronomia empregam de forma cada vez mais precisa, graças ao desenvolvimento dos instrumentos de medição do tempo. O tempo da física, medido pelos relógios é uma abstração. Medido pelo tempo, o trabalho toma emprestado de seu instrumento de medida um caráter essencial, a abstração”7.
O trabalho abstrato, aplicado a um tempo medido-medidor, é um resultado da troca mercantil generalizada.
É interessante ver como se elaborou o conceito físico de trabalho no começo do século XIX, pouco antes de Marx desmascarar a “força de trabalho” como fonte do lucro . Coriolis o introduziu, em 1829, para dar conta da economia da máquina. O conceito físico de trabalho permite articular física e economia, respondendo ao problema de como medir a produção e os desgastes das máquinas, como otimizar seu uso. Para Coriolis, “o trabalho é a justa medida de ação das máquinas e o rendimento em trabalho útil a medida de sua eficácia”8.
Prefere o termo de trabalho ao de “potência mecânica” ou “quantidade de ação”. O conceito físico de trabalho foi elaborado, portanto, a partir do trabalho humano e sugeriu o estudo do rendimento do homem como conversor de energia, desde a “moeda mecânica” de Navier até a tese de Jules Amar sobre o rendimento da máquina humana (1909), contemporânea dos trabalhos de Taylor sobre a supressão dos movimentos inúteis e o cálculo de uma “fadiga diária normal”.
Marx entendeu claramente este processo de abstração do trabalho:
“A indiferença em relação ao trabalho determinado corresponde a uma forma de sociedade na qual os indivíduos passam, com facilidade, de um trabalho a outro e o tipo de trabalho determinado resulta fortuito, portanto, indiferente. Nessa sociedade, o trabalho se converteu, não só como categoria mas na própria realidade, em um meio para criar a riqueza em geral, deixando de estar vinculado aos indivíduos como determinação dentro de uma particularidade. Neste estado de coisas, alcançou seu mais alto grau de desenvolvimento na forma de existência mais moderna das sociedades burguesas, onde a abstração da categoria ‘trabalho’, ‘trabalho em geral’, trabalho sem mais, ponto de partida da economia moderna, torna-se verdade prática”9.
O que está em crise é este trabalho específico, esse trabalho assalariado e esta relação de assalariamento, na qual o tempo de trabalho abstrato é a medida geral da riqueza social. Essa crise era previsível – e foi prevista – há muito tempo:
“O roubo do tempo de trabalho alheio, sobre o qual se baseia a riqueza atual, torna-se uma base miserável se considerarmos aquela recém desenvolvida e que foi criada pela própria grande indústria. A partir do momento em que o trabalho sob sua forma imediata deixou de ser a grande fonte da riqueza, o tempo de trabalho deixa de ser, necessariamente, a medida de valor de uso (…). Por um lado, (o capital) dá vida a todas as capacidades da ciência e da natureza, assim como da combinação e da comunicação social, para fazer com que a criação da riqueza seja relativamente independente do tempo de trabalho a que se refere. Por outro lado, quer medir estas gigantescas forças sociais assim criadas e aprisioná-las nos limites requeridos para conservar o valor como valor já criado”10.
Há cerca de cento e cinqüenta anos, Marx anunciava dessa maneira a crise da lei de valor, resultante do próprio desenvolvimento das capacidades de produção: a mediação da riqueza por meio do tempo de trabalho torna-se uma “base miserável” a partir do momento em que as forças mediatas do trabalho (a parte do trabalho e do saber acumuladas no curso de gerações) prevalecem sobre as formas imediatas e a criação de riquezas se faz relativamente independente do tempo diretamente utilizado na sua produção.
Quando André Gorz escreve que “o tempo de trabalho continua, contudo, sendo a base sobre a qual se distribuem as rendas”, ainda que o tempo de trabalho “tenha deixado de ser medida da riqueza criada”, limita-se a paraphraseur Marx, agregando uma confusão: o tempo de trabalho continua sendo socialmente a medida da riqueza criada, mas uma medida cada vez mais miserável e irrationnel11. Quando René Passet constata que “o produto nacional se converte em um verdadeiro bem coletivo”, que reclama uma justiça distributiva, prolonga o mesmo diagnóstico.
Não se pode, portanto, confundir a crise da lei do valor com o desaparecimento do trabalho no sentido geral do termo:
“Este é o resultado da evolução atual. A lei do valor torna-se caduca. Exige, de fato, outra economia, na qual nem os preços reflitam o custo do trabalho imediato, cada vez mais marginal, contido nos produtos e nos meios de trabalho, nem o sistema de preços expressem o valor de troca dos produtos. Os preços serão necessariamente preços políticos, e o sistema de preços o reflexo da escolha pela sociedade de um modelo de consumo, de civilização, de vida”12.
Diferente da maior parte dos críticos superficiais do trabalho e dos profetas de seu desaparecimento, André Gorz é coerente nesse aspecto. Se, o pretendido “final do trabalho” traduz, na realidade, uma crise da lei do valor, então é necessária uma outra lógica. Falar de “preços políticos”, resultantes de uma escolha democrática da sociedade e não dos automatismos do mercado, é ir ao miolo do problema: a planificação e a autogestão devem primar sobre o mercado.
A brutalidade e a duração da crise se deve a que, no momento em que seus efeitos irracionais são cada vez mais patentes, “pela primeira vez na história do capitalismo, a velha lei do valor de Marx, através dos movimentos de capitais de um ramo ou de uma empresa a outra, atua não apenas a médio e longo prazo, mas, também, a curto prazo (…) A mundialização dos mercados financeiros, junto com os decisivos progressos nas técnicas de informação, significa concretamente que, pela primeira vez na história do capitalismo, as rentabilidades das grandes empresas da maior parte dos países do planeta são comparadas diariamente, ao menos potencialmente, por uma multidão de operadores financeiros que podem decidir sancionar as diferenças muito flagrantes”13.
“Composição orgânica do trabalho”
A “crise do trabalho”, portanto, não anuncia o “fim do trabalho” no sentido geral do termo. Designa, evitando nomeá-la por seu nome, uma crise específica, do trabalho explorado e da relação capital/trabalho ou, dito de outra maneira, uma crise da relação capitalista de produção.
Enquanto o discurso usual da mídia denuncia com ênfase o arcaísmo da crítica marxista da economia política, como se o tempo de trabalho já não desempenhasse nenhum papel na era das redes, dos computadores e dos robôs, pode-se comprovar que a redução da relação social em tempo de trabalho abstrato aparece em toda parte. Ao se tratar da idade de aposentadoria, da anualização da jornada de trabalho, da redução da semana de trabalho, do pagamento de horas extras, da adequação dos horários ou dos ritmos escolares, do trabalho dominical ou da “gestão por stress”, a luta para dividir o tempo de trabalho em tempo necessário e sobretrabalho é atual. Mas, esse tempo abstrato médio, estabelecido pelo jogo do mercado, reflete de forma cada vez pior a heterogeneidade e a complexidade de um trabalho socializado, no qual a parte de trabalho morto (o trabalho das gerações precedentes acumulado na forma de técnicas e saberes) é cada vez mais importante. O custo social do trabalho se afasta, cada vez mais, da medida mercantil de seu custo imediato.
Gorz propõe, neste sentido, a noção de “composição orgânica do trabalho”, expressando a relação entre trabalho vivo e trabalho morto, no próprio processo de trabalho. Ilustra, assim, um aspecto particular da tendência geral de evolução da composição orgânica do capital. Por outro lado, quando o próprio Gorz anuncia o desaparecimento do trabalho abstrato, está extrapolando de forma abusiva. O trabalho abstrato não desaparece: em sua sede por lucro, o capital sempre tem necessidade do trabalho vivo, ainda que deva mobilizar uma quantidade crescente de trabalho morto para transformá-lo em valor. Depois da partida de xadrez de Kasparov contra um computador, disseram que a máquina havia vencido ao homem. Mas Deep Blue nunca foi nada mais do que uma massa considerável de trabalho morto acumulado e socializado.
A redução da parte do trabalho industrial diretamente produtivo em relação à soma do trabalho coletivo e ao desenvolvimento dos serviços não significa, portanto, o fim do trabalho. Significa, apenas, uma modificação histórica na sua composição orgânica. Com uma dificuldade suplementar: os ganhos de produtividade obtidos no setores de produção de bens não são facilmente transferíveis aos setores de serviços, como a saúde ou a educação, nas mesmas condições de rentabilidade e de lucro (não se pode curar uma pessoa doente ou educar uma criança na décima parte do tempo, ainda que se possa produzir um automóvel ou um televisor em dez vezes menos tempo). A não ser os serviços, que ainda são públicos, sejam profundamente reorganizados segundo uma lógica mercantil estrita, com setores rentáveis privatizados e setores de assistência mínima caritativa.
Do “sonho toyotista” ao pesadelo neoliberal
Pode-se comprovar que os ‘sonhos toyotistas’ de um trabalho autônomo, inteligente, recomposto, não duraram muito, que o trabalho se transforma de uma maneira muito diferente da que havia sido anunciado dez anos atrás e, que, ao contrário, implantaram-se, massivamente, formas neotaylorianas em alguns setores de serviços (hotelaria, alimentação, escritórios).
Ainda que Gorz comece anunciando de forma imprudente que “a crise (econômica global) conseguiu superar a crise do regime fordista”, reconhece na seqüência que “as condições de crescimento endógeno não estão reunidas”, e, constata, ainda, uma “volta ao taylorismo”14. Sublinha, com toda razão, a volta a formas de dependência pessoal na relação trabalhista, onde as pessoas se vêem obrigadas a venderem a si mesmas, e não somente seu tempo e sua força de trabalho, segundo os caprichos do mercado (vendedoras “flexíveis”, caminhoneiros, disponibilidade permanente no domicílio). A lei do “mercado de emprego” segundo a qual deve-se “saber vender-se”, expressa cruamente essa verdade.
Thomas Coutrot, por sua vez, considera que é “difícil encontrar indícios de um novo compromisso fordista”. A tese de um modelo toyotista, alternativo foi invalidada pelos fatos. Quanto ao fordismo, ainda que seja neo, parece superado no marco de uma fase híbrida de emergência de um “regime neoliberal” (de mobilização da força de trabalho) e de cooperação forçada, submetido a uma pressão extrema dos mercados financeiros mundializados. O conflito inerente à relação salarial está longe de desaparecer: não se pode pedir aos assalariados que se comportem como “sujeitos em seu trabalho” e seguirem sendo “objetos em seu emprego”, como atores a curto prazo e como simples peões passivos das estratégias industriais ou financeiros a longo prazo15.
O trabalho e o assalariamento não desaparecem, se metamorfoseiam. A lei do valor não desaparece por si mesma, suas contradições se exacerbam. Até o ponto de gerar uma verdadeira crise civilizatória, que se manifesta tanto na massificação do desemprego e na exclusão, como nas modalidades da crise ecológica.
Os desafios do debate sobre o trabalho são muito concretos, como revelam as questões da redução do tempo de trabalho ou de garantia de uma renda universal. Voltemos por um momento a Lafargue. Retoma um texto de Napoleao, escrito em 5 de maio de 1807:
“Quanto mais trabalhem meus povos, menos vício haverá. Sou a autoridade e estou disposto a ordenar que no domingo, depois dos ofícios, se abram as lojas e os operários retornem a seu trabalho”.
Isso demonstra que a controvérsia sobre o trabalho dominical não vem de agora. Ao contrário, alguns patrões ilustrados já consideravam excessiva a jornada de 12 horas e recomendavam sua redução para onze horas: tendo experimentado esta medida, durante quatro anos “em nossos estabelecimentos industriais, nos encontramos bem e a produção média, em vez de diminuir, aumentou”. Tampouco não é de agora o “toma lá, dá cá”, tempo de trabalho contra produtividade…
Trabalhos práticos
Ainda que seja um elemento chave na luta contra o desemprego, a redução do tempo de trabalho não representa, por si mesma, uma panacéia. Somente é eficaz se inserida em um dispositivo mais amplo de reorganização do trabalho, da divisão do trabalho, dos horários, da formação e na condição de ser ajustada, regularmente, com os ganhos de produtividade. Para que esta lógica se imponha sobre a flexibilidade, tão ao gosto da patronal ilustrada, é necessário uma sólida relação de forças.
Diante da dificuldade para construí-la, muitos discursos cedem à resignação e fazem da necessidade virtude. O desemprego massivo teria se convertido em uma fatalidade, o trabalho, um gênero raro, no melhor dos casos, intermitente, no pior, inencontrável. Disto decorre a idéia, cada vez mais difundida, de desconectar do trabalho “o direito a ter direitos”. É uma idéia sedutora para os setores excluídos, porque teoriza sobre seu cansaço em correr atrás de um emprego improvável.
Aqui se misturam várias questões. Ainda que não se admita a idéia do desaparecimento do trabalho, pode-se imaginar sua transformação, no sentido de uma redução dos empregos estáveis e por toda uma vida, em favor da alternância de empregos. Haveria mais trabalhos intermitentes como já existem trabalhos por temporada nos espetáculos:
“O uso do trabalho tende a converter-se em uma seqüência de empregos, reconversões, esperas, novos empregos; deveria se considerar, portanto, a verdadeira capacidade de trabalho, como a possibilidade de seguir esses itinerários. O salário se converteria em um salário da disponibilidade, pago tanto durante os períodos de espera de emprego, como durante o próprio emprego”16.
Tudo bem!. Mas quem garantiria esse “salário de disponibilidade?
Alguns (como os autores do informe Boissonat) sonham com um pool de empregadores, que utilizam, em função de suas necessidades, um pool de mão-de-obra comum, que corresponderia, simplesmente, a uma crescente flexibilidade e maior dependência. Outra hipótese consistiria em estabelecer um estatuto do trabalhador que seria reconhecido não por uma empresa em particular, mas “pelo Estado como cooperativa de trabalhadores”17. Nesse caso, não se trataria somente de uma socialização da simples proteção social, mas de uma socialização e de uma redistribuição generalizada da renda. Isso, estaremos de acordo, é pouco compatível com a lei de mercado.
As versões mais correntes de renda de cidadania, tais como o “direito ao salário universal incondicional”, ou “a renda social primária distribuída igualitariamente e de maneira incondicional” (Jean-Marc Ferry), são, em geral, muito mais modestas. Partem da idéia de que “a ideologia do pleno emprego salarial é o maior obstáculo a uma solução positiva da crise”18. Por essa razão, logicamente, admitem que “a garantia de uma renda incondicional apenas aumenta as oportunidades de encontrar um emprego assalariado”. Trata-se de fazer da necessidade virtude.
O assunto se complica quando se aventura no perigoso exercício da quantificação. Gorz contrapõe, prudentemente, à “renda de subsistência”, um “renda suficiente”. Mas, o que determina a suficiência: o salário mínimo interprofissional? A renda mínima mínimo de inserção? A ajuda social complementar? As tentativas de quantificar um benefício universal que substitua os mínimos sociais dentro de uma lógica liberal conduzem a institucionalização de uma nova plebe de excluídos, amparados pela renda mínima de inserção (no melhor dos casos) e aos jogos televisivos. A cenoura da renda universal transforma-se, então, em uma máquina de guerra contra a seguridade social. Dois audazes economistas quantificaram, apoiando-se em simulações orçamentarias, o financiamento de uma renda universal de 2.400 francos anuais, para concluir que uma fórmula menos ambiciosa, de 1.200 francos anuais, já criaria um “sério problema”: “Isso permitiria voltar a motivar quem já estão amparados pela renda mínima de inserção, alguns dos quais são difíceis de serem reintegrados ao mercado de trabalho?”. Certamente, é de se duvidar. E, além disso, “tudo depende da análise que se faça do fenômeno do desemprego”.19 Isso é óbvio!
Consciente do perigo, André Gorz reconhece a dificuldade. Concede à reivindicação da renda universal não um valor prático de mobilização imediata, mas um “valor educativo”, já que “não é realizável imediatamente”. Essa reivindicação permitiria sublinhar “a falta de sentido de um sistema que realiza economias de tempo de trabalho sem precedentes, mas converte o tempo assim liberado em uma calamidade”, porque não sabe nem reparti-lo, nem repartir as riquezas produzidas ou produtivas, nem reconhece o valor intrínseco do tempo livre e do tempo para atividades superiores. Certo. Mas esse exercício de pura pedagogia pode custar caro na prática, se desanima os desempregados e os excluídos na luta imediata pelo direito ao emprego ou, na sua falta, pelo direito a uma renda que somente a relação de forças pode fazer com que se aproxime ao único mínimo social concebível, o salário mínimo.
A oposição entre direito a uma renda e direito ao emprego torna-se decididamente perversa quando se alia, tal como faz Jean-Marc Ferry, com a idéia de que o problema já não é de exploração, mas de exclusão, como se a segunda não fosse conseqüência da primeira, como se ambas não fossem o direito e o reverso da relação salarial. Esse postulado conduz a uma crítica simétrica de um pretenso tensionamento obreirista na reivindicação do pleno emprego e na defesa dos direitos adquiridos, e de uma “crença modernista” nas virtudes do progresso. O paradoxo é que a versão liberal da renda universal leva a uma monetarização generalizada das relações sociais, em detrimento do serviço público e de espaços de gratuidade subtraídos da lógica mercantil.
Gorz é, desde logo, mais lúcido: “Levado às últimas conseqüências, o benefício universal de uma renda social suficiente equivale a uma disponibilização das riquezas socialmente produzidas. Uma disponibilização e não a uma repartição. A repartição viria depois”20.
Isso, porque uma renda que garantisse o direito à existência entraria em contradição direta com o sacrossanto direito de propriedade. Todo o problema se reduz, então, a construir a relação de forças que permitia impô-lo.
André Gorz encontra as mesmas dificuldades do caso do benefício universal, quando aborda o tema da cooperação e da multiatividade. Concretamente, tratar-se-ia de “criar espaços ambivalentes”, de forma que cada um possa pertencer a cooperativas de autoprodução, para desenvolver uma economia de escambo, que favoreça a economia local e a produção direta de valores de uso.
Um mercado sem relações mercantis?
Mas esses enclaves microeconomicos não mercantis continuariam existindo com a regulação mercantil macroeconômica: “Diferente das Bolsas de Trabalho britânicas do século XIX, baseadas no escambo de trabalho, os círculos de cooperação não abolem nem a moeda, nem o mercado, mas abolem o poder do dinheiro, as cegas leis do mercado”21.
Essa abolição do poder do dinheiro e da cegueira do mercado… no interior do respeito ao mercado parece um prodígio. Gorz contenta-se em afirmar que a moeda local não pode servir para o enriquecimento de uns em detrimento de outros, para o benefício pessoal e o enriquecimento privado, como se a pressão ambiental do mercado não levasse à dissolução das melhores intenções. Muitas histórias de cooperativas operárias revelam este processo, a partir do momento em que a relação de forças sociais geral se deteriora.
Invocando uma moeda local que limita a propriedade privada e o poder de compra de cada um “ao que se pode retirar do bem comum para seu uso pessoal e para as necessidades da família”, Gorz cita significativamente Locke e cai na utopia pré-capitalista de uma sociedade de pequenos produtores proprietários independentes. Sua fórmula de uma “moeda-tempo” ou de uma “moeda-trabalho”, oposta ao dinheiro oficial, retoma a utopia clássica do pagamento direto em bônus horários de trabalho, sem transação mercantil. Essa “moeda-tempo” seria restrita ao “círculo que a emite”. Seria de “validade curta e conversibilidade limitada”. E não seria acumulável!
Em Miséria da Filosofia, Marx desmascara o mito proudhoniano de uma repartição que “transforma todos os homens em trabalhadores imediatos que trocam quantidades de trabalho iguais”. A isso se chegaria, decretando-se a abolição do valor, em lugar de criar as condições para seu desaparecimento efetivo. O intercâmbio direto de quantidades de trabalho entre trabalhadores imediatos é uma má “robinsonada”, baseada na ilusão de poder liberar o intercâmbio individual direto de qualquer antagonismo social.
Dez anos mais tarde, na Contribuição de 1859, Marx ataca John Gray, para quem o produtor receberia um recibo certificando uma quantidade de trabalho contida na mercadoria e expressa diretamente em tempo de trabalho. Essa sugestão acaba num beco sem saída, porque o valor se expressa, precisamente, em preço: Gray “acha, simplesmente, que as mercadorias poderiam se relacionar diretamente, umas com as outras, como produtos do trabalho social”. Sonha, assim, com a volta a uma economia de troca, onde o mistério da mercadoria se dissiparia, como que por encanto. Entretanto, as mercadorias devem ser reconhecidas como “trabalho social geral”. Não se pode reconhecer, como faz Gray, o tempo de trabalho contido nas mercadorias “imediatamente social”, isto é, como “tempo de trabalho de indivíduos diretamente associados”, a não ser em uma sociedade comunista, onde a planificação e a democracia autogestionária realizam essa associação.
Por fim, na Crítica ao Programa de Gotha, Marx volta a abordar a questão dos bônus de trabalho como uma hipótese para a sociedade comunista, onde o produtor receberia “o equivalente exato do que deu para a sociedade por meio de seu trabalho”. Mas esse princípio, formalmente igual, não realizaria mais do que uma igualdade primitiva, em realidade desigualitária. Somente uma gestão coletiva e democrática do excedente social permitiria uma redistribuição social eqüitativa: a mediação mercantil e monetária não pode, portanto, ser substituída por um simples intercâmbio direto entre produtores, mas por uma mediação explicitamente política, a da deliberação democrática.
A polêmica sobre os bônus do trabalho foi bem resumida por Stavros Tombazos:
“Se o valor se desdobra em valor e preço, o mesmo tempo de trabalho se apresenta como igual e desigual a si mesmo, o que é, do ponto de vista dos bônus do trabalho, impossível”22.
A forma monetária é a própria forma desse desdobramento. Não pode ser superada sem que seja também superada a regulação mercantil. Gorz por sua vez é bem consciente disso: “Existe uma necessidade e um problema de mediações entre cada comunidade local e a sociedade, e entre as próprias comunidades e as próprias sociedades; esses problemas e essas mediações são as da política, política que não desaparecerá por encanto em prol das relações comunicacionais e consensuais das comunidades”23.
De fato. Mas, dizer que a mediação política impõe-se sobre a mediação mercantil é afirmar outro horizonte estratégico, distinto do modesto objetivo dos “espaços ambivalentes”.
Ao se tratar do benefício universal ou da multiatividade cooperativa, encontra-se a mesma ambigüidade de respostas que permitem uma dupla leitura, a partir do momento em que se abstraem as condições concretas da luta e das relações sociais: podem se inserir tanto em uma perspectiva libertadora, para além do capitalismo, como servir de maquiagem e de expedientes das reformas neoliberais.
As fórmulas aproximativas de Gorz sobre o desaparecimento do trabalho, sobre a superação do regime fordista, ou sobre a superação do trabalho abstrato, não são simples fragilidades. Sustentam os equívocos de sua opção programática, começando pelo postulado de que “o verdadeiro trabalho já não está no trabalho” e que “a sociedade do trabalho morreu”.
A vida, a partir daí, estaria em outra parte.
Para além do trabalho?
Não há dúvida que as patologias do não-trabalho reforçam diariamente a importância da socialização pelo trabalho. E todavia, invocando a famosa “neurose do domingo”, Daniel Mothé criticou, muitas vezes, “o mito do tempo liberado”: no trabalho alienado, ócio alienado, tribos desportivas, jogos televisados e tamaguchis domestiquons…24 Gorz, parte da constatação de que, no ato de trabalhar, “a atividade prático-sensorial” fica reduzida a “uma pobreza extrema”, para concluir que o trabalho já não é “a atividade apropriativa do mundo objetivo” e que a sociedade do trabalho converteu-se em “um fantasma sobrevivendo fantasmagoricamente à sua extinção”. Deveríamos nos “atrever a desejar o Êxodo da sociedade do trabalho”.
Êxodo ou exílio? Para onde?
A expressão contém um primeiro inconveniente muito concreto: renúncia à batalha pelo direito ao emprego, considerada desde esse momento como uma batalha de retaguarda, perdida de antemão. Tem, também, como conseqüência, uma confusão ideológica.
O que há para além do trabalho?
O repouso? O tempo livre? “A preguiça”, teria respondido Lafargue.
Somente no século XVI as palavras trabalho e trabalhar (derivadas do sinistro tripalium) vieram substituir obrar ou lavorar. A mudança terminológica acompanhava uma mudança social. O advento do trabalho assalariado determina as modalidades de não-trabalho. O repouso (que alguns estudos denominam, significativamente, “des-fadiga”) corresponde, mais ou menos, ao tempo necessário para a reconstituição da força de trabalho. Mais do que simples repouso, o ócio seria uma parte do tempo liberado, do tempo para si, enquanto o ócio de consumo fica como a imagem invertida do trabalho, cujas formas de alienação reproduz.
A “preguiça”, com a qual son hava Lafargue, evocaria mais uma forma contemporânea e plebéia do otium dos antigos, cuja Transcrição é difícil: ociosidade, deixar de trabalhar? O otium não se opõe ao trabalho, mas sim ao negotium, ao cuidado da vida interessada. Jean-Claude Milner define-o, não como um tempo desligado das obrigações do trabalho (repouso ou tempo livre), mas como um tempo ante si, um tempo em si, o tempo das liberdades e da cultura, das letras e das artes, das amizades, do amor e do prazer25. Mas a sociedade do lucro confunde repouso, tempo livre e otium, mistura-os profundamente, integrando as obras da cultura nas norma do ócio e no ritual do intercâmbio mercantil. Diferente do tempo livre, o tempo do otium, sem equivalente mercantil, seria o da obra, o “tempo reencontrado”.
Essa busca de um tempo perdido aproxima-se, muito, das opiniões sobre a “vida ativa”, de Hannah Arendt, para quem o trabalhador universal perdeu o sentido da obra (substituído pelo trabalho), do uso (substituído pelo consumo) e da ação. Articula sua proposição em torno da distinção entre vida ativa e vida contemplativa, e na dupla crítica da contemplação platônica e da valorização moderna exclusiva do trabalho. Em sua opinião, o trabalho extrai seu caráter temporal da natureza transitória das coisas produzidas para sobreviver. Corresponde, nesse sentido, à natureza biológica da espécie. A obra, ao contrário, constitui o reino do duradouro, a condição humana de pertencimento ao mundo, que corresponde à não naturalidade. A ação, enfim, é a única atividade que coloca “os homens diretamente em relação” e que corresponde à condição humana da pluralidade, o fato de que são homens, e não o homem, que habita o mundo. O trabalho assegura a sobrevivência do indivíduo e da espécie. A obra confere uma duração à futilidade da vida mortal e a fugacidade do tempo humano. A ação, “na medida em que se dedica a fundar e manter os organismos políticos, cria a condição do futuro, isto é, da História”.
Substituindo a obra pelo trabalho, a modernidade capitalista teria retornado ao mundo inabitável e lastreado com um acontecimento ameaçador: “O advento da automatização esvaziará, provavelmente em poucas décadas, as fábricas e liberará a humanidade de sua carga mais antiga e mais natural, a servidão perante a necessidade. Nisso todavia está em jogo um aspecto fundamental da condição humana”.
Mas, “acontece como nos contos de fadas, nos quais o desejo resulta em um engano. Uma sociedade de trabalhadores vai se livrar das cadeias do trabalho, e esta sociedade não sabe nada das atividades mais elevadas e enriquecedoras para as quais valeria a pena ganhar essa liberdade”.
Por isso, o vertigem de Hannah Arendt diante da idéia de uma sociedade de “trabalhadores sem trabalho”, privados da “única atividade que lhes resta”: “Não se pode imaginar nada pion!”26. Esse perigo, em sua opinião, está acompanhado por outro: “Qu’a política desapareça por completo do mundo”. Não encontra outros meios que não a realização radical do “único elemento utópico” de Marx:
“Qu’a emancipação do trabalho na época moderna, não só fracasse na hora de instaurar uma era de liberdade universal, mas conduza, pelo contrário, toda a humanidade a se inclinar pela primeira vez sob o jugo da necessidade, eis um perigo que Marx havia se dado conta quando assinalava qu’o objetivo da revolução não poderia ser a emancipação, já realizada, das classes trabalhadoras e que devia consistir na emancipação do homem do trabalho. A primeira vista, esse objetivo parecia utópico, o único elemento estritamente utópico da doutrina de Marx”.
Entretanto, os progressos da automatização levam a que “se possa perguntar se a utopia de ontem não será a realidade de amanhã”27. Mas, onde os românticos opõem ao trabalho assalariado/alienado a volta à sacralização da obra, ali onde a própria Hannah Arendt contrapõe a “vida ativa dos gregos”, trata-se, ao contrário, de conceber a superação efetiva desse modo de trabalho historicamente determinado, para o qual o desenvolvimento das forças produtivas já reúne as condições concretas. Por meio da incorporação do trabalho intelectual ao trabalho complexo cada vez mais socializado, um número crescente de trabalhos incluem uma parte de criação, tendendo a reconciliar e misturar o trabalho e o otium. A ânsia de lucros do capital constitui o principal obstáculo a essa tendência. A intuição emancipadora de Marx não parece tão “utópica” como parecia a primeira vista:
“Desde o momento em que o trabalho começa a ser repartido, cada um tem uma esfera de atividade exclusiva e determinada, que lhe vem imposta e da qual não pode fugir; ser caçador, pescador ou pastor ou crítico, e deve continuar sendo se não quiser perder os meios de sua existência; enquanto que na sociedade comunista, onde cada um não tem uma esfera de atividade exclusiva, ainda que possa aperfeiçoar-se no ramo que deseje, a sociedade regulamenta a produção geral, o que cria a possibilidade para mim de fazer hoje esta coisa, amanhã outra, caçar pela manhã, pescar à tarde, cuidar do gado ao entardecer, fazer críticas depois do jantar segundo minhas vontades, sem me converter, por isso, em caçador, pescador ou critiquons”28. Sob o regime do capital, o trabalho alienado, a divisão do trabalho, a lei do mercado e a propriedade privada formam um quadro infernal coerente. Não se pode escapar da alienação da relação salarial sem postular, ao mesmo tempo, a questão da apropriação social, da planificação democrática da economia e a substituição da divisão do trabalho.
O trabalho da contradição
O dogma do trabalho libertador e a profecia do final do trabalho têm em comum sua unilateralidade. O primeiro só considera a dimensão antropológica do trabalho, abstraindo seu caráter historicamente determinado. O segundo só leva em consideração seu caráter concretamente alienado e alienante, abstraindo suas potencialidades criadoras. Na realidade, na “imbricação da ação e do trabalho”, as dimensões antropológicas e históricas estão estreitamente combinadas. Ainda que a alienação domine o trabalho assalariado há, ao mesmo tempo, um processo de socialização “forçosamente ambivalente”29. Como ocorre no esporte de competição, a submissão ao princípio do rendimento e do resultado não consegue apagar completamente todo o resto de inspiração lúdica: se o espetáculo desportivo se reduzisse a uma pura exploração do corpo, seria incapaz de cumprir sua função de comunhão consensual.
Não se trata de negar essa contradição, mas de se instalar nela para trabalhá-la. Por trás do trabalho imposto persiste, ainda que de forma débil, surda, essa “necessidade do possível”, que diferencia a atividade humana da plenitude simplesmente vegetativa. É o sinal, mesmo, de sua finitude e de sua capacidade para “ir mais longe”, para melhor ou para pior.
Junho de 1999
Primeira Edição: Publicado nos Cadernos Em Tempo nº 308. Versão original publicada na revista Viento Sur n.44, junho de 1999. Transcrição de Caio Galvão de França.
Fonte: Marxismo, Modernidade e Utopia », Editora Xamã, São Paulo, 2000.
Transcrição: Daniel Monteiro. Autorizada por José Corrêa Leite, organizador da coletânea.
Documents joints
- André Gorz. Misère du présent, richesse du possible. Paris: Galilée, 1997, p.97.
- Dominique Méda. Le Travail, une valeur en voie de disparition. Paris: Abier 1995, p. 19.
- Hanna Arendt. Condition de l’homme moderne. Paris: Agora 1994, p. 157.
- Karl Marx. Manuscritos de 1844, n° 22.
- Ver também o comentário desta citação feito por Nicolas Grimaldi (Le Travail, communion et excommunications. Paris: PUF, 1998): “O trabalho consistiria, de fato, em dar sua vida e suscitar, por este dom único, a alegria de outra vida. Mas, diferente do amor, ainda que seja também uma maneira de dar irreversivelmente sua vida, plenamente, sem reservas, não impõe sua própria pessoa. Sob sua forma anônima, silenciosa, sem contornos claros e discreta, o trabalho é o incógnito do amor”. Mas, “para quem tem que acudir ao seu emprego mecanicamente, em horas fixas, com gestos sempre idênticos, o trabalho não é nenhum desencantamento do futuro no presente, mas, ao contrário, o estancamento do presente que sempre o impede de decolar.”(p. 131-136).
- Karl Marx. Contribuición a la Critica de la Economia Politica. Ver também Jean-Louis Bertocchi. Marx et le sens du travail. Paris: Editions sociales, 1996.
- Pierre Naville. Le nouveau Léviathan. Paris: Anthropos, tomo II, p. 407.
- Coriolis. Du calcut et de l’effet de machines, 1829.
- Karl Marx. Contribuición a la Critica de la Economia Politica
- Karl Marx. Manuscritos de 1857-58, tomo II.
- André Gorz. <em>Op. cit.,</em> p. 146.
- Ibid., p. 148.
- Thomas Coutrot, L’enterpreise néo-liberale, nouvelle utopie capitaliste. Paris: La Découverte, 1998, p. 223-224.
- André Gorz. Op. cit., p. 17, 43.
- Thomas Coutrot, Op. cit., p. 83, 245.
- André Gorz, Op. cit., p. 60.
- Pierre Rolle. Oú va le salariat. Paris: Cahieres libres, 1996, p. 2.
- Jean-Marc Ferry. L’allocation universelle, pour un revenu de citoyenneté. Paris: Cerf, 1996, p. 151.
- François Bourguignon y Yoland Bresson, Le Monde, 8/4/97.
- André Gorz, op. cit., p. 148.
- Ibid, p. 169.
- Stavros Tombazos. Les temps du Capital. Paris: Cahiers des Saisons, 1994.
- André Gorz. Op. cit., p. 176.
- Ver em especial Daniel Mothé, “Le mythe du temps liberé” y “Temps libre, quel avenir”, en Le Travail, quel avenir, coletivo. Paris: Folio, 1997.
- Jean-Claude Milner, Le salarie de l’ideal, Seuil, 1997.
- Hannah Arendt, op. cit. P. 37-38.
- Ibid.p. 181-183.
- Karl Marx/Friedrich Engels, A ideologia alemã.
- Christophe Dejours, Souffrance en France, Seuil, 1998.