Marcos e o Espelho Partido da Mundialização

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O texto do sub-comandante Marcos, do Exército Zapatista de Libertação Nacional, publicado pelo Le Monde Diplomatique de agosto de 1997 (e, no Brasil, pela Folha de S. Paulo no seu caderno Mais), levanta uma prova dificilmente refutável das misérias infligidas ao planeta pelo neoliberalismo. A nova ordem mundial anunciada com bumbos e fanfarras, após a queda do Muro de Berlim, é sempre injusta, violenta, irracional, em uma palavra, desordenada. A lógica desigual da mundialização mercantil, alimenta recuos e pânicos nas identidades, dando as costas ao futuro de uma humanidade realmente universal. Destroça as conquistas sociais, estremece as instituições, destrói os mecanismos de regulação, sem conseguir substituí-los por formas superiores, coerentes em nível regional ou mundial. Daí resulta um mundo em farrapos e esfacelado. Um quebra-cabeças que não pode ser montado, diria Marcos.

Crise de civilização

É a era das redes. Como aquela dos trens do começo do século, estas redes financeiras ou eletrônicas, estas auto-estradas da informação, tecem uma grande malha que enlaça as potências comerciais, bancárias, industriais, que conecta os capitais; mas ela deixa cair, de suas redes, zonas cinzentas, periferias, terrenos baldios, países ou sub-continentes inteiros, todos abandonados. Concentração aqui, de riqueza e poder, desamparo mais além: o desenvolvimento sempre desigual não está melhor combinado. É a lei implacável do mercado mundial e da competição sem piedade, de todos contra todos.

A crise que daí resulta é mais profunda e mais duradoura que as crises econômicas clássicas. Ela anuncia uma verdadeira crise de civilização, isto é, uma crise que tem a ver com laços e medidas comuns entre os seres humanos. A amplitude do desemprego e a exclusão em escala planetária, cada vez mais complexa e socializada, se torna irredutível à “miserável” medida de trabalho abstrato, avaliado em unidades de tempo homogêneas. A acumulação de desastres econômicos mostram que se torna impossível reduzir, a longo prazo, a energia do ecossistema e, a curto prazo, da lógica mercantil. As forças produtivas sacudidas pela nova revolução tecnológica, não se mantém mais no limite de um imperativo de lucro exclusivo.

O mundo se transforma. Inclusive nos países ricos, aqueles que, ainda ontem, sonhavam com o progresso perpétuo, com uma escada em que se sobe e jamais se desce, temem que o amanhã seja pior que o hoje, para eles e para seus filhos.

“A globalização moderna, o neoliberalismo como sistema mundial, deve ser entendido como uma nova guerra de conquista de territórios. O fim da terceira guerra mundial ou ‘guerra fria’ não significa que o mundo haja superado a bipolaridade, e se encontre estável sob a hegemonia do vencedor”.

Guerra e política

Marcos vai mais longe: “a quarta guerra mundial começou”: uma “guerra mundial totalmente total”. Que o sistema está criticamente instável, minado de conflitos, é um fato: dos Balcãs ao norte da Índia, se estende uma falha convulsiva de confrontações armadas endêmicas. Quanto a uma “quarta guerra mundial”, tudo depende do que se entenda por guerra. As formas da guerra não tem cessado de transformar-se em função das relações sociais, da estrutura dos Estados, da organização do mundo. A Revolução Francesa e o surgimento dos Estados-Nações marcaram a passagem das guerras dinásticas às guerras nacionais, em que se enfrentam não simplesmente exércitos, mas povos. A era do imperialismo moderno foi também a da escalada até a guerra total, ilustrada por duas guerras mundiais e por meios de destruição cada vez mais massivos e indiscriminados. A bomba de neutrons, cujo princípio consiste em aniquilar os humanos preservando seus bens, simboliza às mil maravilhas o espírito do capital.

Depois do equilíbrio da guerra fria e do terror nuclear (que não impediu a proliferação de guerras quentes bárbaras e de guerras civis implacáveis), a desaparição da União Soviética inauguraria, pois, um novo giro geo-estratégico, ilustrado pela nova escala de intensidade dos conflitos imaginados no Pentágono, pela guerra do Golfo, pelas expedições neocoloniais “caritativas”. Lucien Pourier, um dos teóricos da dissuação francesa, o admite lucidamente: “O fato nuclear e a guerra fria haviam engendrado uma forma singular de sistema-mundo”, nós estamos “envolvidos em uma nova morfogênesis do universo político-estratégico” e somos “ainda incapazes de compreender o alcance do fenômeno”, o que nos obriga a “reconhecer a racionalidade limitada da ação estratégica” (Le Chantier strategique. Hachette-Poche, Pluriel, 1997).

Napoleãno definia, não faz muito a estratégia como a arte de ser o mais forte em um ponto dado, num momento dado. Porém onde está o ponto agora, já que há disseminação e multiplicação de centros de poder, e qual é o momento, já que o conflito se estende em sua duração? O campo e o resultado da batalha se tornam incertos. Pois a “nova ordem” em gestação permanece, por hora, como disse Marcos: “uma ordem em mil pedaços” ou um “espelho partido”. Uma nova delimitação de territórios, novos agenciamentos de espaços, novas hierarquias de poder, apenas se esboçam. Jamais no passado estas convulsões se desenvolveram amigavelmente. Foram necessários os levantes de 1848, as grandes repartições sangrentas das colônias, as guerras de independência e duas guerras mundiais. Parecemos hoje instalados, logo, em uma espécie de guerra rasteira, de duração indeterminada, cujos conflitos locais, de alcance global, aparecem como os seus momentos. Invertendo a relação de Clausewitz, a política aparece agora como a continuação da guerra por meios pacíficos.

Ao falar de “quarta guerra mundial”, pode ser que Marcos tente abarcar esta queda e o estado de um mundo condenado a viver em pé de guerra, no espanto ou terror sem fim de uma catástrofe anunciada.

“O resultado da explosão não é um monte de ruínas fumegantes ou de milhares de corpos inertes, mas um bairro que se agrega a uma megalópolis comercial do novo hipermercado planetário e uma força de trabalho reperfilada para o novo mercado de emprego planetário”.

Por hora, o resultado desta dilatação do conflito no espaço e no tempo, não é o do apocalipse mas a devastação de um planeta colocado à merce da desregulamentação dos mercados e do deslocamento das populações; em um duplo sentido, onde elas são lançadas ao torvelinho da circulação e onde elas não encontram espaço, lugar, cidade onde viver em condições de cidadãos.

A mobilidade instantânea dos capitais, as deslocalizações da produção, as migrações financeiras especulativas, a multinacionalização das empresas, minam sem dúvida a soberania dos Estados-Nação. Sua substância se escapa pelos dois lados, por baixo, na privatização do espaço público, o desencadeamento das capelas e dos campanários, as guerras dos bandos e das máfias; por cima, no esboço de poderes financeiros, jurídicos, militares, supranacionais.

Uma tendência não concluída

No entanto, não se trata, ainda, mais que de uma tendência, da qual nos equivocaríamos em antecipar sua finalização. O capital, inclusive mundializado, permanece ligado aos aparatos de Estados nacionais, as potências militares e monetárias que sustentam suas conquistas e garantem seus lucros. Os Estados Unidos o recordaram espetacularmente por ocasião da guerra do Golfo. O projeto de unidade européia é explicitamente o de uma Europa-Potência alcançando a estatura crítica de um império moderno. Se a liderança mundial é multipolar, o imperialismo permanece fundado sobre uma concentração sem precedente de riqueza, tecnologia e patentes. Os Estados nacionais não foram, pois, pura e simplesmente varridos pela mundialização. Ao invés, como o afirma precisamente Marcos, eles são “obrigados a redefinir sua identidade”: “as megalópolis substituem as nações? Não, ou melhor não somente. Elas lhes atribuem novas funções, novos limites e novas perspectivas. Países inteiros se tornam departamentos da mega-empresa neoliberal, que produz assim, por um lado, a destruição/despovoamento, e, por outro, a reconstrução/reorganização de regiões e de nações”.

A constatação é pertinente. Conduz, no caso do México, confrontado com o grande vizinho imperial e aos efeitos do Tratado de Livre Comércio, à defesa da soberania nacional, e do direito de um povo escolher seu futuro e sua maneira de viver. Enquanto se acusa aos zapatistas de querer a fragmentação do país, são os empresários de Tabasco ou Chiapas, quem sonham com a secessão para explorar por sua conta os recursos petrolíferos:

“Os zapatistas, pensam que a defesa do Estado nacional é necessária frente à mundialização, e que as tentativas para romper o México em pedaços provém do grupo que governa e não das justas demandas de autonomia dos povos índios”.

Contra as novas formas de submissão e dependência, e contra as tentações do separatismo ou do deslocamento, este projeto de “reconstrução da nação” inscrito na dupla legitimidade da luta de independência e da Revolução Mexicana de 1911, parece absolutamente justo.

Nosso problema é sensivelmente diferente. Nós vivemos em um país que pertence ao clube exclusivo dos países ricos comprometido na construção de uma nova potência imperial. Devemos imaginar as reivindicações, os direitos, os objetivos que fazem a ponte entre a tradição nacional das lutas sociais e a criação de um novo espaço continental.

Na França, nós devemos retomar a dinâmica do ideal republicano universal (aquele da declaração universal – não nacional – dos direitos humanos) ; em outras palavras, devemos quebrar a conexão entre a República e a nação. O republicanismo ainda é um vasto e irrealizado projeto. Uma verdadeira república é uma comunidade política de cidadãos, não está ligada à nação como um caracol à sua concha. É um espírito, um futuro, uma república desejada ou imaginada que nunca é atingida. A aspiração republicana carrega ecos de revolução permanente.

Reabiliar a política

Em um momento em que, sob o efeito da mundialização, a correspondência entre um território, um mercado, um Estado, se desfaz, onde os espaços políticos, sociais, jurídicos, ecológicos, não coincidem mais, o princípio republicano permite pensar uma escala móvel de soberania, uma nova distribuição de poderes e níveis articulados de decisão.

“Nesta nova guerra, a política, enquanto motor do Estado-Nação não existe mais. Ela serve somente para gerenciar a economia e os homens políticos não são mais que gerentes de empresa”.

A retórica da mundialização é, com efeito, uma retórica da resignação, um empreendimento de despolitização, onde “a parte não fatal do futuro” desaparece entre a fatalidade das “leis” econômicas e os consolos do moralismo humanitário. A submissão aos “estímulos” se impõe sobre a vontade de mudar o mundo. O interesse na juventude pela figura de Che, está em relação como sentimento confuso que ele encarna: a antítese absoluta de sua renúncia, de suas abdicações, de seus abandonos, do que é propriamente humano do homem. A economia e a moeda não são fetiches autômatos mas expressão de relações sociais que inventamos. Suas pretensas “leis” aparecem hoje em todo seu absurdo.

Por que, quando produzimos mais em menos tempo, a miséria e a penúria se desenvolvem em lugar de retroceder? Por que a Bolsa de Nova York enlouquece quando o emprego aumenta? Porque a técnica produz a exclusão em lugar de liberar tempo para viver? Por que se pretende que o trabalho desapareça quando há tantas necessidades por satisfazer, por transformar, por inventar? Estas perguntas não são econômicas. Elas são políticas. Não há nada mais urgente que reabilitar a política – não a dos políticos que são homens duplos, com dupla linguagem, vida dupla, com tanta duplicidade, como a mercadoria à que eles servem – mas a política profana como autodeterminação coletiva de um mundo sem deuses e fetiches.

Questionam-nos, dizendo que não temos um modelo. Mas o futuro não se desenha em planos. É inventado no presente. A utopia concreta repousa incansavelmente no chão das resistências e lutas cotidianas. O colapso dos regimes burocráticos, longe de deixar-nos órfãos de modelos, abre os caminhos para o futuro.

Questionam-nos, dizendo que o motor parou. Asseguram-nos que a luta de classes acabou. “E, no entanto, eles lutam”, dizemos uns para os outros. Dizem-nos que os proletários não são mais encontráveis, mas ninguém ousa pretender que os possuidores, os burgueses, os ricos, os poderosos – qualquer que seja o nome que se dê – desapareceram. Os proletários, hoje, não são unicamente os explorados, mas também os oprimidos e os humilhados, todos os “descartáveis” e os “excluídos da modernidade”, todos os “sem”, os sem emprego, sem terra, sem teto, sem documentos, sem nada, e isto já abarca a muita gente.

Questionam-nos, dizendo que não possuímos uma estratégia clara. Mudar um mundo inaceitável seria talvez mais necessário que ontem, mas impossível. As vias da transformação social não conduziriam mais a nenhuma parte. Marcos faz áqueles na esquerda uma pergunta séria.

“Para começar te rogo não confundir a resistência com a oposição política. A oposição não se opõe ao poder, e sua forma mais extrema é a de um partido de oposição ; enquanto a resistência não pode ser um partido. Ela não é feita para governar e sim … para resistir”.

Marcos valoriza essa frase de Tomás Segovia. Encontramos o eco dos textos fundadores da Frente Zapatista reivindicando uma política de resistência “sem aspirar tomar o poder”, aspirando constituir “uma força política que não lute pela tomada do poder, mas por criar, unir, desenvolver os movimentos cívicos e populares”. Um contra-poder, pois. Porém, o desenvolvimento deste contra-poder desembocará, se o poder lhe deixa tempo, em uma dualidade de poderes, em uma situação de equilíbrio instável que não pode se perdurar: entre dois poderes, dois direitos, dois princípios que se opõem, a força decide.

Contra-poder e luta pelo poder

Esta é a história de todas as revoluções, quaisquer que tenham sido suas formas. Querer uma “força política que não lute pela tomada do poder” pode se revestir de diversas significações. A primeira, seria de grande sagacidade. Ela consiste em dizer que não se quer porque não se pode. Pelo momento, tendo em conta as relações de forças nacionais e internacionais, porém, como o poder existe, e não se pode ignorá-lo, é necessário ganhar tempo, modificar as relações de forças, articular alianças, em uma palavra, entrar, de um modo ou de outro, na arena da política institucional. É o que faz a sua maneira, o Exército Zapatista em sua declaração sobre os resultados das eleições de 6 de julho, com a vitória de Cuahautemoc Cárdenas para a prefeitura da Cidade do México, e ao afirmar a necessidade da constituição de uma “opção eleitoral de esquerda”.

A segunda, mais ambiciosa, consiste em sublinhar que não se trata unicamente de conquistar um instrumento de poder existente, mas de transformar totalmente as relações de poder e a relação do poder com a sociedade. A ênfase repetidamente colocada sobre o “mandar-obedecendo” (em lugar de mando-obediência) expressa um tal objetivo: o comando, a direção, não se torna legítimo a menos que represente fielmente a vontade de baixo, da grande maioria, e se eles o “obedecem”. Os mandatários permanecem responsáveis diante de seus mandatados. É lógico, posto que a luta pode ser parcial, mobilizar tal ou qual categoria, tal ou qual parte do povo, já que a criação de um mundo novo e de uma sociedade nova é obra de multidões, de um processo molecular, necessariamente mais amplo, longo, complexo, que qualquer decreto de uma minoria esclarecida. Reencontramos, então, a inspiração efêmera, intermitente, de experiências de democracia majoritária, de sua “forma finalmente encontrada”, na Comuna de Paris, nos Sovietes de 1905 e 1917, em todas as experiências libertárias, de autogestão, de controle popular, de democracia participativa.

A terceira traduz uma dificuldade estratégica. Os revolucionários estão em uma situação análoga a dos militares. Diz-se amiúde que estes estão sempre com um atraso de uma guerra, porque tentam pensar a próxima à luz da última. Os revolucionários estão em uma situação comparável e pela mesma razão: podemos fazer hipóteses e simulações, mas em matéria de guerras e revoluções, não se fazem experiências de laboratórios e a realidade se revela mais complexa que a ficção. A disseminação e a mobilidade dos alvos, a fluidez e a elasticidade das frentes, causam hoje muitas dificuldades aos militares. Nada há de assombroso em que elas provoquem também perplexidade nos revolucionários.

O internacionalismo a se reinventar

A insistência metafórica de Marcos em uma estratégia de resistência mais que de conquista, se inscreve nesta situação inédita:

“Se usas capuz. De todos os tamanhos, de diferentes cores, de formas variadas. Seu único ponto em comum: uma vontade de resistência à nova ordem mundial”.

Entretanto, esta resistência multicor e polimorfa, pode fazer de conta que ignora o poder. O poder, ele, não a ignora. Atua, manobra, reforma, toma iniciativas. A guerra de desgaste avança para a guerra de movimento, a construção paciente de uma hegemonia sobre a tentação impaciente do assalto decisivo, mas a resistência se alimenta, necessariamente, de uma esperança de contra-ofensiva e de derrubada da ordem estabelecida.

“É urgente falar da megapolítica. A megapolítica engloba políticas nacionais e as une a um centro que tem interesses mundiais e como lógica, a dos mercados”.

Esta megapolítica, onde se consegue escutar o monólogo dos mercados ventrílocos, é a negação da política enquanto espaço de liberdades, de libertação, de controvérsia, onde se elabora o laço frágil das diferenças, a união da diversidade, a unidade do múltiplo. Ela exerce um poder impessoal sobre os seres e as coisas.

Unicamente uma política intergalática estaria hoje à altura deste desafio. Intergalática é o pseudônimo do velho internacionalismo, sempre a se reiventar. Cantando a Internacional – a unidade e não a eliminação das diferenças – os oprimidos estavam adiantados um século. Mais tarde, o “socialismo em um só país”, “o socialismo realmente existente”, “o internacionalismo socialista” blindado em Budapeste e em Praga, passavam por lá. E, como resultado, os primeiros se tornaram os últimos: os oprimidos estão um século atrasados (no mínimo) sobre os capitais e as mercadorias.

Razão demais para apurar o passo.
Para avançar com o método.
Para estimular nossa lenta impaciência.

1998
Primeira Edição: Publicado no Em Tempo nº 300, março/abril 1998. Artigo traduzido do espanhol por Eduardo Mancuso de Convergência Socialista nº 3. Os intertítulos são do editor.
Fonte: “Marxismo, Modernidade e Utopia”, Editora Xamã, São Paulo, 2000).
Transcrição: Daniel Monteiro – Autorizada por José Corrêa Leite, organizador da coletânea.

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