Depois de 1968, era quase de moda ser revolucionário e viver a ilusão de que a revolução seria fácil (um “jantar de gala”). Exigia-se “tudo e já”. Essa consciência feliz explica-se em parte pelos trinta (“gloriosos”) anos de crescimento praticamente ininterrupto desde a guerra mundial. Hoje, depois dos desastres no Leste, muitos se perguntam se a revolução e o socialismo ainda são desejáveis. Outros, convencidos de que é necessário mudar o mundo, duvidam de que seja possível.
Recolocar o problema nos seus eixos
Não somos órfãos de um modelo de sociedade. E menos ainda na medida que os regimes que entraram em colapso com o Muro de Berlim e a desintegração da URSS nunca foram, a nossos olhos, modelos do que quer que fosse. A luta pela emancipação humana não consiste em opor um modelo a outro. Parte antes da resistência contra as injustiças, as humilhações, o desprezo generalizado, em um mundo em que os 20% mais ricos se apossam de 85% das riquezas, enquanto que os 20% mais pobres partilham menos de 2%. Esta ordem planetária mercantil, portadora de desigualdades e de violências, pura e simplesmente, não é aceitável.
O desemprego e a exclusão massivos são a ilustração espantosa de quão absurdo é este sistema. Os formidáveis ganhos de produtividade, tornam possível a produção de tantas ou mais riquezas em cinco vezes menos tempo do que era possível há cinquenta anos atrás. Este tempo economizado poderia ser consagrado a outras coisas: uma redução massiva do tempo de trabalho e uma transformação do próprio trabalho, condição de uma participação ativa de todos e de todas na vida da cidade; ou a satisfação das necessidades sociais (habitação, educação, saúde, cultura). Quais são os critérios, e quem os define, que permitem decidir que o investimento em educação é excessivo ou o cuidado com a saúde exagerado? Por que é que as vendas de automóveis são consideradas boas para a economia e as despesas com saúde más?
Esta irracionalidade crescente da lógica do capital (que faz com que a criação 700 mil empregos possa ocasionar uma queda na Bolsa de Nova Iorque), que tudo mede e que organiza a sociedade na base da troca de tempos de trabalho, é em si mesma a demonstração dos limites desta medida miserável. Desde que o trabalho incorpora cada vez mais conhecimentos, cada vez mais complexos, ele se torna irredutível a um trabalho abstrato.
A devastação do meio ambiente e a pilhagem despreocupada das energias não renováveis representam uma outra manifestação desta irracionalidade inerente a esta medida miserável das relações sociais. A procura desenfreada do lucro a curto prazo leva a ignorar o médio e o longo prazo (poluição, desflorestamento, reciclagem dos resíduos…). “Depois de mim o dilúvio” aparece como a divisa da corrida ao lucro. Destrói a solidariedade entre gerações, tão necessária para a reprodução da espécie. Só uma economia politicamente controlada, que integre as exigências de longo prazo, será capaz de satisfazer as principais necessidades sociais sem devastar a natureza.
A crise atual dura desde os anos setenta, sem que os breves episódios de retomada do desenvolvimento sejam suficientes para fazer diminuir o desemprego, mesmo nos países ricos. Não se trata de um mero problema de rentabilidade das empresas. Os lucros foram crescendo sem que isso levasse a um aumento do investimento produtivo e à criação de emprego. É a especulação financeira que tem se beneficiado. Na realidade, esta crise é uma crise global da acumulação do capital e da reprodução das relações sociais. A burguesia pode superar esta crise, mas será ao preço de fortes prejuízos para os explorados e oprimidos. A pretexto da mundialização, uma nova partilha dos territórios e dos espaços (econômicos, jurídicos, de comunicação) está em curso. Esta grande mutação não poderá ser pacífica. Já está acompanhada de tragédias (Bósnia, Ruanda, Chechênia), que não são guerras de outras eras, antes se inserem nesta reorganização planetária. Guerras, desemprego e exclusão, perigos ecológicos, anunciam um futuro que já não é futuro. Mesmo as ilusões do progresso, segundo as quais as futuras gerações viveriam necessariamente melhor do que as precedentes, tendem a ser destruídas. É mais necessário do que nunca mudar o mundo. O papel dos revolucionários é fazer com que essa necessidade se torne possível.
Uma outra idéia de progresso
Com efeito, o formidável desenvolvimento dos conhecimentos e das capacidades técnicas não arrasta consigo mecanicamente o progresso social e cultural correspondentes. Sob o reino do capital, progresso e regressão continuam a estar indissociavelmente ligados. Devemos, portanto, conceber critérios de progresso que não se reduzam ao desempenho da grande indústria ou da “conquista do espaço”. Com o risco de alguma simplificação, sublinho os seguintes três critérios:
1. A redução massiva do tempo de trabalho, tornada possível pelos grandes ganhos de produtividade. Isso implica uma mudança radical da relação com o trabalho e com o próprio conteúdo do trabalho. Esta redução da parte da vida consagrada a um trabalho escravizado e alienado é a primeira condição para o desenvolvimento democrático da sociedade, em que todas e todos teriam os meios para exercerem plenamente as suas responsabilidades e o seu controle sobre o poder. É também a condição para o livre desenvolvimento de cada um(a). A admirável diversidade dos indivíduos constitui, com efeito, uma oportunidade fundamental, não para celebrar a individualidade ilusória e mutilada pela uniformização mercantil, mas para desenvolver realmente um indivíduo criativo, cujas necessidades pessoais e coletivas possam se tornar cada vez mais ricas e diversificadas. Os seres humanos poderiam reencontrar, assim, o sentido do jogo e os prazeres do corpo, hoje submetidos ao princípio da rentabilidade e às regras do grande espetáculo em que foram transformados os esportes.
2. A qualidade das relações entre o homem e a mulher (e reciprocamente) é também um outro critério de progresso, na medida em que constitui a primeira experiência simultânea do outro (e da diferença entre os sexos) e da universalidade da espécie. De forma mais geral, em todo o lugar onde subsista uma relação de dominação e de opressão das mulheres pelos homens, o estrangeiro, o mestiço, o que vem de fora, o outro que existe dentro de mim, serão também uma ameaça. O apoio à luta das mulheres pela igualdade dos direitos, contra as violências, pelo direito a dispor do seu corpo, inscrevem-se desde já nessa perspectiva.
3. Trata-se finalmente de trabalhar para o desenvolvimento de uma humanidade realmente universal e solidária, através de um desenvolvimento realmente planetário da produção e da comunicação, através do enriquecimento de todos pela contribuição das suas diferenças. A universalização mercantil, submetida aos imperativos do capital, continua a ser uma universalização abstrata, contraditória e mutilada. Sob a ditadura do FMI, do Banco Mundial, ou da Organização Mundial do Comércio (especificamente através da utilização da dívida externa), esta universalização tem como contraponto, no seu outro extremo, uma corrente de xenofobia e racismo em geral, os temores religiosos, o fechamento das comunidades em si mesmas e uma cadeia de pânico das identidades. O internacionalismo generoso e solidário continua a ser uma idéia nova.
Que socialismo queremos?
Não se trata de buscar um modelo de alternativa ou de traçar os planos de uma sociedade ou cidade perfeitas. O futuro acontece enquanto se caminha, a partir das contradições reais da ordem existente. Mas qualquer projeto revolucionário tem a sua parte de sonho. É preciso sonhar para explorar o campo do possível.
Imaginar um mundo em que a jornada de trabalho seja reduzida à metade. O que implica trabalhar de outra forma, ter o tempo de se instruir e de se educar ao longo de toda uma vida, de escapar às especializações definitivas, de poder ser simultaneamente trabalhador e também poeta, pintor ou músico. Existe hoje, no mundo da “arte” profissional uma minoria que nem sempre tem alguma coisa a dizer, enquanto que uma grande maioria, que tem tanto a dar, nunca tem a oportunidade ou os meios de se exprimir. A redução do tempo de trabalho é a condição de uma metamorfose e de um de um desaparecimento da divisão social do trabalho, tanto na produção como entre os sexos.
Produzir para as necessidades da maioria e não para uma corrida cega aos lucros e aos privilégios. O que quer dizer trabalhar, morar e viver de outra forma. Uma tal perspectiva é inconcebível sem tocar na sacrossanta propriedade privada dos grandes meios de produção e de comunicação. Como é que se pode adaptar a produção às necessidades, controlar a longo prazo o meio ambiente, coordenar os esforços e libertar a pesquisa básica dos critérios imediatos de rentabilidade, critérios estes que deixam a concorrência e o mercado tomar as decisões a curto prazo, tudo isso à revelia dos cidadãos? Como pretender garantir o direito à habitação sem colocar em questão a propriedade fundiária? Sem atacar o despotismo da empresa, como se pode assegurar que as transferências de ganhos de produtividade sejam feitas para o desenvolvimento de um sistema de saúde, de educação, não estatizados mas socializados? Apesar dos discursos mais recentes sobre a cidadania da empresa e apesar dos direitos sindicais ameaçados, a realidade da empresa submetida à lei do lucro é o despotismo patronal e não a democracia. As polêmicas a propósito das privatizações e do serviço público ilustram a questão: trata-se de rentabilizar a qualquer preço para engordar os lucros das empresas privadas que farão tudo o possível nesse sentido, fora de qualquer controle da coletividade, ou de garantir a todos um acesso igualitário a certos bens básicos (direito à alimentação, à moradia, à cultura)? O direito à existência deve prevalecer sobre o direito à propriedade. O que não implica uma estatização total dos grandes meios de produção e de troca, mas antes dar à coletividade os meios de escolher e de controlar o seu próprio futuro.
Promover a democracia mais ampla. Quem deve decidir? Os cidadãos associados ou os mercados financeiros, segundo que critérios e que prioridades? O destino da humanidade não pode ser decidido em um jogo de cartas! A democracia mais ampla exige a disponibilidade de tempo de se informar sobre as grandes questões, o tempo de deliberar diretamente, e os meios de se pronunciar sem se depender exclusivamente da opinião dos especialistas.
Trata-se portanto de reabilitar a própria idéia da política e de estender a democracia para fora da esfera institucional até à democracia da produção de bens e da cultura, generalizando a autogestão e o controle dos representantes pelos representados. O que supõe a livre confrontação pluralista de projetos e de programas, a plena soberania e a independência das organizações sindicais e associativas em relação aos partidos, a extensão de uma democracia não somente política, mas social e auto-gestionária.
Finalmente, desenvolver uma solidariedade internacional contra todos os espíritos estreitos e paroquiais. Pensar e agir como cidadãos do mundo, conforme a ambição inicial da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão. O que implica em especial uma solidariedade de todos os dias em relação aos povos dos países dependentes e dominados que sofreram séculos de pilhagem e de dominação. Esta pilhagem toma hoje a forma da dívida. Permite aos credores imporem as suas condições e imposições, empurrando os países em vias de desenvolvimento para a via do subdesenvolvimento.
Nessa perspectiva geral, a Europa que queremos não é a proposta pelos acordos de Maastricht, das mercadorias e da moeda, dos juizes e dos banqueiros, que se opõe à própria idéia de uma Europa aberta e fraterna, de uma Europa social e democrática.
Trata-se somente de pistas que desenham os contornos de um futuro diferente e possível de ser vivido. O amanhã começa de fato nas lutas de hoje. Vocês conhecem a célebre fórmula de Bertolt Brecht: os que lutam um dia são bons, os que lutam vários anos são muito bons, os que lutam toda a sua vida são indispensáveis. Isso é também o socialismo que queremos: tornar “indispensáveis” o maior número possível de seres humanos.
1995
Primeira Edição: Trata-se da transcrição da intervenção em um debate promovido em um acampamento de juventude europeia, no verão de 1995.
Transcrição: Daniel Monteiro. Autorizada por José Corrêa Leite